Por Julia Almeida Vasconcelos. Le Monde Diplomatique. 6 de setembro.
Entre o coração de Dom Pedro I, os tratores do agronegócio e o espetáculo militar em Copacabana, serão definidos os rumos das eleições. Não porque estaremos diante de uma manobra final, mas pelo enlaçar de duas frentes de uma estratégia: a radicalização, por um lado; e manutenção da ordem estabelecida, por outro, que encontrará os próximos passos no balanço do dia 7 e, já prevê no seu horizonte, a necessidade de definições.
Esse 7 de setembro, assim como a estratégia de Bolsonaro, não tem apenas um fio condutor, mas expressa a forma aparentemente contraditória que ele disputa e constrói seu projeto de poder. A capacidade de utilização dessa dualidade (radicalização e manutenção da ordem) é um elemento que provoca confusão no entendimento e leitura de suas movimentações, no centro gravitacional de um binômio (vai ter golpe/ele recuou) que nunca se realiza, porque são elementos que se complementam – e não que se excluem. Além dessa estratégia de projeto de poder, este ano, pelos elementos simbólicos que carrega (coração colonial, tratores e canhões), também é um momento de exaltação de seu projeto político e seu programa para o país.
A atmosfera política não é a mesma do 7 de setembro de 2021, pois, embora a estratégia de agitação da manifestação seja a mobilização da base de apoio ao presidente e a permanência de insígnias antidemocráticas e o questionamento da credibilidade do sistema eleitoral, Bolsonaro não pode antecipar um desfecho drástico, sob risco de perder a crivilidade de sua posição política, que tem possibilitado a redução da distância percentual de sua candidatura (embora agora estagnado) em relação à de Lula e, somado ao crescimento de candidaturas ao centro, a possibilidade de um 2º turno.
O debate da Band demonstrou isso. Assim como, não radicalizou em um discurso antidemocrático, Bolsonaro se apresentou, como vem fazendo em sua propaganda eleitoral, como mais um candidato que age dentro da ordem. No entanto, mantém a estratégia para sua rede mais articulada de deixar as brechas para um discurso mais radical, como no caso de suas considerações finais de conteúdo absolutamente ideológico (e seu tom violento com a repórter Vera Magalhães – o que, no entanto, dificulta seu crescimento nos setores mais moderados).
O risco do “retorno da esquerda”, da ideia do que está acontecendo nos demais países latino-americanos com o avanço de setores progressistas (como a Colômbia, Chile e Argentina), retomam os temas centrais que disputaram a lógica bolsonarista dos últimos anos. Não à toa, apesar das vitórias importantes dos setores democráticos e progressistas, a atmosfera de violência política, não é uma realidade apenas brasileira. Em 1º de setembro de 2022, o atentado à vice-presidente Cristina Kirchner na Argentina e o espancamento do irmão do presidente chileno Gabriel Boric, em meio ao contexto de votação da nova Constituição Chilena, não são coincidências (assim como, o fatídico episódio do Capitólio nos Estados Unidos em janeiro de 2021). A extrema direita mundial vem disputando hegemonia no mundo inteiro e, mesmo em meio a derrotas, segue arrastando um público fascista e tensionando a institucionalidade e a lógica política vigente com violência.
É, em meio às eleições mais importantes desde a redemocratização do país, que ocorrerão manifestações de apoio à candidatura do presidente Jair Bolsonaro à reeleição, no 7 de Setembro do bicentenário da Independência do Brasil. O simbolismo não poderia ser mais icônico: coração, tratores e canhões. Essa é a tríade mística que será invocada e ela diz muito sobre o país que vem sendo construído nos últimos anos.
O elemento da militarização do Estado é peça central da estratégia do governo Bolsonaro e possui, como ponto de inflexão, o golpe de 2016, quando os militares voltaram para uma posição mais central de articulação política. Eles estavam nas articulações da queda de Dilma e na pressão para a manutenção da prisão de Lula (vide o tuíte de Villas Boas de ameaça ao STF, que passou pelo Estado maior), assim como na estruturação das eleições de Bolsonaro, com o vice general Hamilton Mourão e toda uma vasta equipe ministerial. De lá para cá, são quase 7 mil cargos ocupados em comissão no governo e uma série de alterações institucionais e legislativas para permitir a militarização de algumas áreas do Estado.
A militarização remonta ao período da ditadura civil-militar brasileira e a ideia de trazer o coração de Dom Pedro I tem origem exatamente nessa ligação. Durante os 150 anos da independência, foram trazidos o cadáver embalsamado de Dom Pedro I e de Dona Leopoldina, no ano de 1972, auge do período ditatorial. A ideia de conclamar o bicentenário com uma exposição do coração de Dom Pedro é uma alusão direta a esse episódio, uma reivindicação de herança e memória militar, bem como a exaltação, com a imagem do coração de Dom Pedro, de um velho pacto simbólico de manutenção e períodos de mudanças (independência com manutenção da família imperial), tentando preservar o sistema estrutural colonial brasileiro, de interesses na manutenção da desigualdade social.
Os tratores previstos no desfile de Brasília, por sua vez, buscam trabalhar uma disputa de ideário de país. O agronegócio, base fundamental de apoio ao governo (que teve uma parcela criticada por Lula na entrevista do JN), será exaltado nessa manifestação. A imagem de crescimento econômico desse país, de centralidade no setor agrário, extrativista e exportador, é compatível com os últimos anos de acentuação da desindustrialização do país. Bem como ressaltar a legitimação do aumento do desmatamento, das queimadas, da ameaça da Amazônia, dos povos originários e da violência no campo, não é uma referência qualquer, é a expressão do modelo econômico de depredação ambiental bolsonarista.
Por fim, formando a tríade, o reforço e a exaltação do elemento do militarismo, do armamento, dos canhões, representados pelas atividades do desfile militar em Copacabana, com previsão da organização das Três Forças em maior número de atividades, finalizará a mística geral de comemoração de uma construção do Brasil de Bolsonaro. A exaltação da militarização como uma construção de lógica democrática, juntamente com a manifestação de apoio ao governo, aponta o tipo de sociedade e de política que está por trás dessa comemoração. É conservador, porque busca reafirmar as bases desse Brasil colonial: controle do Estado pelas elites e apagamento dos processos políticos de resistência de movimentos organizados, o modelo agrário-exportador que pressupõe a concentração de terras, a violência armada para todas as formas de resistência e de organização para transformações sociais.
Mas não apenas de simbolismo do projeto político é feito o bicentenário da Independência, pois se trata de um ponto nodal da estratégia de Bolsonaro para as eleições. A aposta de manutenção da mobilização de sua base social tem sido o grande trunfo do governo e de sua capacidade de reversão em cenários adversos; de igual modo, seu recente crescimento nas pesquisas eleitorais, com melhora dos dados econômicos depois do auxílio emergencial e outros estímulos visando o período eleitoral, fazem com que faça sentido para Bolsonaro tentar potencializar a sua chance de vitória eleitoral. A aposta de mais uma demonstração de forças de apoio popular e militar, às vésperas da eleição, assim como uma possibilidade de “efeito onda” é uma das tentativas deste 7 de setembro.
Ademais, um eventual fato político no dia pode ser o início de uma virada das eleições. Esse fato político, dada a militarização da sociedade no último período, pode ter diversas variáveis, apesar da aposta, por ora, da candidatura à reeleição, numa manifestação sem grandes sobressaltos da parte dos bolsonaristas – mas não há como prever e controlar esse enredo.
No entanto, será o desenrolar do cenário eleitoral e da influência das manifestações do dia 7 de setembro que determinarão os próximos passos. Um processo de maior radicalização política se começar a se consolidar o cenário de derrota eleitoral ou risco de perda no primeiro turno não está descartado. Mas independente disso, o central é Bolsonaro manter essa base de apoio em latência de mobilização e acenar para os demais setores políticos e empresariais como uma alternativa inescapável – incluindo as tensões de reação numa eventual perda.
A manutenção da capacidade de mobilização de sua base de apoio mais coesa foi inclusive o que motivou a alteração do local do desfile militar da Presidente Vargas para Copacabana no Rio de Janeiro, bairro com base militar relevante e de apoio ao governo. A pressão sobre a transferência do local do desfile foi grande e, apesar de contrariar a organização com a prefeitura, Bolsonaro conseguiu garantir o apoio das Forças Armadas. Será a primeira vez que ocorrerá a completa simbiose da manifestação política da base de apoio do governo e as Forças Armadas enquanto instituição. No ano passado, tentou-se manter uma aproximação das duas atividades (o desfile e a manifestação), mas sem constituir a completa fusão de ambas. Embora a escalada autoritária estivesse em outro tom, tendo até mesmo carta da Associação Nacional dos Policiais Militares, apontando que iriam para a manifestação e deviam obediência às Forças Armadas e não aos governadores estaduais.
Em verdade, Bolsonaro utilizou a estratégia do último 7 de setembro para realizar o que se denomina de evento-teste, de simulação na estratégia militar. É quando você antecipa como um ensaio uma hipótese de movimentação, que depende de muitos fatores distintos, para saber como eles se comportam caso venha a ocorrer de fato. Naquele momento, Bolsonaro além de dar uma demonstração de força, precisava saber que mantinha sua capacidade de mobilização de massas, relação de interferência nas polícias militares e comando nas Forças Armadas – além de medir como os demais setores sociais, políticos e institucionais reagiriam e, também, o impacto internacional de suas movimentações.
Sem dúvida, vários setores se levantaram contra as ameaças daquela movimentação. No entanto, a própria conformação posterior de maior alinhamento do centrão e de empresários de direita, sob a condução de Michel Temer, revelaram que mais do que ameaça, o sistema utilizaria aquela situação para realinhar as posições com Bolsonaro e, por algum tempo, o presidente reduziu o tom e fez que abaixou a cabeça – mas já tinha tido a resposta que precisava.
O debate de voto impresso e, agora, auditoria das urnas eletrônicas sempre foi uma estratégia de agitação política e de disputa, no seio de sua base radical, do próprio conceito de democracia. No momento da votação do voto impresso, em agosto passado, Bolsonaro deslocou o desfile militar, que sempre ocorreu nos arredores de Brasília, para o Congresso. Ali ele não tentou negociar com emendas (como fez em todas as votações importantes para o governo) para aprovação do voto impresso; ele não queria aprovar o voto, mas sim, ter uma hipótese de “Plano B” para questionar as eleições – caso a configuração de uma derrota se confirmasse –, assim como medir até onde as Forças Armadas iriam em seu apoio. Já havia trocado o alto comando das três Forças em abril de 2021 e vinha testando sua capacidade de controle, vide sua vitória na não punição de Pazuello em participação de ato de apoio ao governo no Rio de Janeiro.
No contexto eleitoral mais próximo, o grave erro do TSE de criar e convidar para composição de uma Comissão de Transparência das Eleições, as Forças Armadas um dia após os atos do 7 de setembro de 2021, tem servido de subterfúgio para aprofundar o debate de que há questionamento sobre a lisura das urnas e, portanto, das eleições, que dão combustível para o ódio e a violência política nas mesmas (com uma população armada).
Somado a isso, o fato político recente, do inquérito sobre os empresários que se manifestaram, no grupo de WhatsApp, pela possibilidade de golpe de Bolsonaro na hipótese de consolidação de uma vitória de Lula, com busca e apreensão em suas casas, agitou a base bolsonarista que mira no STF como seu principal inimigo e entende ser esse inquérito um feito autoritário do Supremo. Assim como a decisão do ministro Fachin de restringir normas que facilitaram a aquisição de armas e munições no Brasil – que já encontrou forte reação do vice Mourão.
As insígnias de liberdade e democracia, permanecem sendo as principais bandeiras substanciais das manifestações, que alimentam a pauta anti-STF, juntamente com o impedimento do retorno de Lula e da esquerda. A disputa do sentido democrático é central para a perspectiva de disputa de hegemonia, pois um movimento ideológico com esse cunho não pode prescindir da lógica de mobilização dos afetos e de pautas que produzam agitação política constante e coesão interna.
Ademais, a recente localização de centralidade de Michelle Bolsonaro, com o apelo evangélico e a agenda reacionária de costumes e em relação a pautas LGBTQI+, mulheres, negritude (dentre outros); assentam o sentido ideológico desse projeto e, de certa forma, aprofundam esse cenário de cruzada cultural e mística de construção do imaginário bolsonarista.
É, indiscutivelmente, um feito de Bolsonaro,após todo esse período ainda conseguir se colocar como um presidente e um candidato antissistêmico, atacado por outras instituições e, muitas vezes, impedido de governar. A capacidade de terceirização das responsabilidades dos limites de seu governo é estratégia central de justificativa das suas posições mais coesas e da necessidade de manter uma defesa e justificar seus erros (e as imputações de práticas corruptas). Afinal, a lógica geral conspiracionista favorece, inclusive, a vitória em disputas de narrativas como as de Queiroz, as rachinhas de Flávio Bolsonaro ou as compras de imóveis em dinheiro vivo.
No 7 de setembro de 2021, embora as manifestações tenham ficado abaixo do esperado, foram expressivas. Foi um feito impressionante no contexto da pandemia, da precarização da vida e do retorno da fome como problema massivo, uma mobilização com as bandeiras de liberdade e democracia, contra o STF, sem nenhuma pauta concreta sobre os principais problemas que assolam o país. Neste ano, as bandeiras, com nova roupagem, permanecem as mesmas e demonstram a aposta de Bolsonaro, em qualquer hipótese: seja para ganhar as eleições; para conduzir uma ruptura institucional ainda maior; ou seja para perder as eleições e se manter na zona política com seus braços armados, sua liderança popular e mística e seu apoio da base mais conservadora (social, religiosa e empresarial).
*Julia Almeida Vasconcelos da Silva é militante da Insurgência/PSOL, advogada, doutoranda em Direito pela USP, professora de Direito na Anhembi Morumbi e pesquisadora do DCHTEM/USP e NEV/USP.