Leon Trotsky, marxists.org, 30 de Julho de 1939
Primeira edição: Socialist Appeal, 15 e 18 de setembro de 1939. Tradução: do catalão por Carlos Serrano Ferreira
Numa dessas pequenas publicações sectárias que se publicam na América do Norte, alimentando-se das migalhas que caem da mesa da Quarta Internacional e que nos retribuem com a mais negra ingratidão, por acaso eu encontrei um artigo dedicado à questão ucraniana. Que confusão! Seu sectário autor se opõe, é claro, a consigna de uma Ucrânia soviética independente. Está a favor da revolução mundial e do socialismo "da cabeça aos pés". Ele nos acusa de ignorar os interesses da URSS e de nos afastarmos da concepção da revolução permanente. Caracteriza-nos como centristas. A crítica é muito grave, quase implacável. Desgraçadamente, ele não entende nada (o título desta minúscula publicação, O marxista, resulta bastante irônico). Mas, a sua incapacidade de compreensão assume formas tão definidas, quase clássicas, o que nos permite esclarecer melhor e mais acabadamente a questão.
O nosso crítico parte da seguinte formulação: "Se os trabalhadores da Ucrânia soviética derrubarem o stalinismo e restabelecerem um Estado operário genuíno se separarão do resto da URSS? Não." E segue assim por diante. "Se os trabalhadores derrubarem o stalinismo", então poderemos ver mais claramente o que fazer. Mas, é preciso primeiro derrubar o stalinismo. E, para conseguir isso, não se devem fechar os olhos diante do o crescimento das tendências separatistas na Ucrânia, mas dar-lhes uma expressão política adequada. "Não viramos as nossas costas à União Soviética [continua o autor], mas alcançar a sua regeneração como a poderosa cidadela da revolução mundial; este é o caminho do marxismo." A tendência real do desenvolvimento das massas, neste caso as massas nacionalmente oprimidas, se substitui por nossas especulações sobre o melhor caminho possível que poderia tomar este tal desenvolvimento. Aplicando o mesmo método, mas com muito mais lógica, se poderia dizer: "Nossa tarefa não é defender uma União Soviética degenerada, mas a revolução mundial triunfante que transformará o mundo inteiro numa União Soviética mundial", etc. Tais apriorismos são muito baratos.
O crítico repete diversas vezes sua formulação que o destino de uma Ucrânia independente está indissoluvelmente ligado à da revolução proletária mundial. Partindo desta perspectiva geral, o ABC de qualquer marxista, consegue, no entanto, juntar um amálgama de passividade contemporizadora e niilismo nacional. O triunfo da revolução proletária em escala mundial é o produto final de múltiplos movimentos, campanhas e batalhas e não uma condição pré-fabricada para a solução automática de todos os problemas. Somente a colocação direta e audaz da questão ucraniana nas condições concretas dadas permitirá que as massas pequeno-burguesas e camponesas se organizem à volta do proletariado, como aconteceu na Rússia em 1917.
É verdade que o autor poderia objetar que antes de outubro a revolução que a Rússia haveria de realizar era burguesa, enquanto que hoje já se fez a revolução socialista. Uma consigna que em 1917 podia ser progressiva, atualmente é reacionária. Este raciocínio, totalmente imbuído de espírito burocrático e sectário, é falso do princípio ao fim.
O direito à autodeterminação nacional é, sem dúvida, um princípio democrático, não um princípio socialista. Porém, na nossa era quem apoia e aplica os princípios genuinamente democráticos é o proletariado revolucionário; por esta razão as tarefas democráticas se entrelaçam com as socialistas. A luta resoluta do Partido Bolchevique pelo direito à autodeterminação das nacionalidades oprimidas pela Rússia facilitou muito a conquista do poder pelo proletariado. Foi como se a revolução proletária tivesse absorvido os problemas democráticos, sobretudo o agrário e o nacional, dando à Revolução Russa um caráter combinado. O proletariado já encarava tarefas socialistas, porém não podia elevar a este nível os camponeses e as nações oprimidas (por sua vez predominantemente camponesas), dedicados à solução de suas tarefas democráticas.
Daí surgiram os compromissos, inescapáveis historicamente, tanto na esfera agrária como na nacional. Apesar das vantagens econômicas da agricultura em grande escala, o governo soviético se viu obrigado a dividir as grandes propriedades. Depois de diversos anos o governo pôde passar à agricultura coletiva; imediatamente deu um salto muito audaz e depois de um tempo se viu obrigado a fazer concessões aos camponeses, permitindo a propriedade privada da terra, que em muitos lugares tende a devorar as fazendas coletivas. Ainda não se resolveram as próximas etapas deste contraditório processo.
A necessidade de um compromisso, ou melhor, de vários compromissos, se coloca de maneira similar no tocante à questão nacional, sendas que não são mais retilíneas que as da revolução agrária. A estrutura federada da União Soviética é fruto de um compromisso entre o centralismo que exige uma economia planificada e a descentralização necessária para o desenvolvimento das nações que no passado estavam oprimidas. Construído o Estado operário sobre o princípio de compromisso de uma federação, o Partido Bolchevique inscreveu na sua constituição o direito das nações à separação completa, indicando desta maneira que não considera resolvida de uma vez e para sempre a questão nacional.
O autor do artigo crítico argumenta que os dirigentes partidários esperavam “convencer as massas que permanecessem dentro dos marcos da República Soviética Federada”. Isto é correto, sempre que se tome a palavra “convencer” no sentido de promover a experiência da colaboração econômica, política e cultural e não no de argumentação lógica. A agitação abstrata em favor do centralismo não tem grande peso por si mesma. Como dissemos, a federação foi um desvio necessário do centralismo. É preciso agregar também que a composição de uma federação não fica estabelecida para sempre. Segundo as condições objetivas, o desenvolvimento de uma federação pode tender a um centralismo maior ou, pelo contrário, em direção de uma independência mais ampla dos seus componentes nacionais. Politicamente não se trata de se é conveniente “em geral” que diversas nacionalidades convivam dentro dos marcos de um Estado único, mas se cada nacionalidade, baseando-se na sua própria experiência, considera vantajoso aderir a um Estado determinado.
Noutras palavras: qual tendência, a centrípeta ou a centrífuga, predomina no regime de compromisso de uma federação? Ou, para colocar mais concretamente: Stálin e os seus sátrapas ucranianos conseguiram ou não convencer as massas ucranianas da superioridade do centralismo de Moscou sobre a independência da Ucrânia? Esta questão é de uma importância decisiva. Não obstante, o seu autor nem mesmo suspeita da sua existência.
Desejam as amplas massas do povo ucraniano se separar da URSS? À primeira vista poderia parecer difícil de responder esta pergunta, já que o povo ucraniano, igual a todos os outros povos da URSS, não tem nenhuma oportunidade de expressar a sua vontade. Porém, a origem mesma do regime totalitário e a sua intensificação cada vez mais brutal, especialmente na Ucrânia, provam que as massas ucranianas são irreconciliavelmente hostis à burocracia soviética. Não faltam evidências que uma das razões fundamentais desta hostilidade constitui a supressão da independência ucraniana. As tendências nacionalistas irromperam violentamente na Ucrânia entre 1917 e 1919. No Partido Borotba [Luta] se expressava a ala esquerda destas tendências. O indicador mais importante do êxito da política leninista na Ucrânia foi a fusão do Partido Bolchevique ucraniano com a organização dos borotbistas.
No transcurso da década seguinte, se produziu uma ruptura com o grupo Borotba, começa a se perseguir seus dirigentes. O velho bolchevique Skripnik, stalinista de puro sangue, se vê impelido ao suicídio em 1933 por a sua suposta tolerância para com as tendências nacionalistas. O verdadeiro “organizador” deste suicídio foi o enviado stalinista, Postishev, que depois fica na Ucrânia como o representante da política centralista. Atualmente, no entanto, o próprio Postishev caiu em desgraça. Estes fatos são profundamente sintomáticos porque revelam a força da pressão da oposição nacionalista sobre a burocracia. Em nenhum lugar os expurgos e repressões assumiram um caráter tão selvagem e massivo como na Ucrânia.
Reveste-se de uma enorme importância política o profundo afastamento da União Soviética dos elementos democráticos ucranianos de fora da URSS. Quando se agrava o problema ucraniano no começo deste ano não se escuta nenhuma voz comunista, porém as dos clérigos e nazistas ucranianos soam muito fortes. Isto significa que a vanguarda proletária deixou o movimento nacional ucraniano lhe escapar das mãos e que este movimento tenha ido muito longe pelo caminho do separatismo. Recentemente também resultam fortemente significativos os ânimos dos ucranianos emigrados na América do Norte. No Canadá, por exemplo, os ucranianos conformam o grosso do Partido Comunista; em 1933 começa, como me informa um importante ativista do movimento, um notório afastamento do comunismo por parte dos operários e camponeses ucranianos que caíram na passividade ou nas mais variadas matizes do nacionalismo. De conjunto, estes sintomas e fatos testificam indiscutivelmente a força crescente das tendências separatistas entre as massas ucranianas.
Este é o fator fundamental em que reside a base de todo o problema. Demonstra que malgrado o gigantesco avanço realizado pela Revolução de Outubro no terreno das relações internacionais, a revolução proletária isolada num só país atrasado tem sido incapaz de resolver a questão nacional, especialmente a ucraniana, que é, em essência, de caráter internacional. A reação termidoriana, coroada pela burocracia bonapartista, fez retroceder as massas também na esfera do nacional. As grandes massas do povo ucraniano estão insatisfeitas com a situação da nação e desejam mudá-la drasticamente. Este é o fato do qual tem de partir a política revolucionária, diferentemente do que faz a burocrática e a sectária.
Se o nosso crítico fosse capaz de raciocinar politicamente teria imaginado sem muita dificuldade os argumentos dos stalinistas contra a consigna de uma Ucrânia independente: “nega a defesa da União Soviética”, “quebra a unidade das massas revolucionárias”, “não serve aos interesses da revolução, mas os do imperialismo”. Noutras palavras, os stalinistas repetiriam os argumentos do nosso autor. Inevitavelmente o farão no futuro.
A burocracia do Kremlin diz à mulher soviética: como no nosso país há socialismo você deve ser feliz e não abortar (ou sofrer o castigo consequente). Aos ucranianos lhes diz: como a revolução socialista resolveu a questão nacional é seu dever ser feliz na URSS e renunciar à toda ideia de separação (ou aceitar o esquadrão de fuzilamento).
O que diz o revolucionária à mulher? “Deve ser você a decidir se quer um filho; eu defenderei o seu direito ao aborto contra a polícia do Kremlin.” Ao povo ucraniano lhe diz: “O que a mim me importa é a sua atitude sobre o seu destino nacional e não os sofismas ‘socialistas’ da polícia do Kremlin; apoiarei a sua luta pela independência com todas as minhas forças!”
O sectário, como tantas vezes sucede, se acha localizado no bando da polícia, salvaguardando o status quo, quer dizer, a violência policial, baseando-se na especulação estéril sobre a superioridade da unificação socialista das nações e contra o fato de que permaneçam divididas. Seguramente, a separação da Ucrânia é uma desvantagem se se compara com uma federação socialista voluntária e igualitária, porém será uma vantagem indiscutível comparada com o estrangulamento burocrático do povo ucraniano. Para unir-se mais estreitamente e honestamente às vezes é necessário separar-se primeiro. Lênin frequentemente recordava que as relações entre os operários noruegueses e suecos melhoraram e se fizeram mais estreitas depois da ruptura da unificação compulsória de Noruega e Suécia.
Temos de partir dos fatos e não de preceitos ideais. A reação termidoriana na URSS, a derrota de várias revoluções, os triunfos do fascismo (que está modelando o mapa da Europa ao seu gosto) deve-se pagar efetivamente em todos os terrenos, inclusive no da questão ucraniana. Se ignorarmos a nova situação criada como consequência das derrotas, se pretendermos que não se passou nada de extraordinário, se contrapusermos as abstrações comuns aos fatos desagradáveis, podemos muito bem estar cedendo à reação as oportunidades que teremos de vingar-nos num futuro mais ou menos imediato.
O nosso autor interpreta a consigna de uma Ucrânia independente da seguinte maneira: “Primeiro a Ucrânia soviética há de se liberar do resto da União Soviética; depois se fará a revolução proletária e se unificará com o resto da Ucrânia”. Porém, como pode haver aí uma separação sem que ocorra primeiro uma revolução? O autor se vê preso num círculo vicioso, e a consigna de uma Ucrânia independente junta com a “lógica defeituosa” de Trotsky fica irremediavelmente desprestigiada. De fato, esta lógica peculiar (“primeiro” e “depois”) é não mais que um exemplo evidente do pensamento escolástico. O nosso desventurado crítico nem suspeita que os processos históricos podem não se produzir “primeiro” e “depois”, mas paralelamente, influindo uns sobre os outros. Acelerar-se ou retardar-se mutuamente; e que a tarefa da política revolucionária consiste precisamente em acelerar a ação e a reação mútua dos processos progressivos. A consigna de uma Ucrânia independente dirige os seus dardos diretamente contra a burocracia de Moscou e permite a vanguarda proletária nuclear as massas camponesas. Por outro lado, a própria consigna dá ao partido proletário a oportunidade de exercer um papel dirigente no movimento nacional ucraniano da Polônia, Romênia e Hungria(1). Ambos processos políticos farão avançar o movimento revolucionário e incrementarão a influância da vanguarda proletária.
O nosso sábio distorce a minha colocação que os operários e camponeses da Ucrânia Ocidental (Polônia) não querem se unir à União Soviética, tal como está constituída atualmente, e que este fato é um argumento a mais a favor de uma Ucrânia independente. Afirma que, ainda que o desejassem, não poderiam unir-se à União Soviética porque só poderiam fazê-lo “depois da revolução proletária na Ucrânia ocidental” (obviamente Polônia). Noutras palavras, hoje a separação da Ucrânia é impossível, e depois que a revolução triunfe seria reacionária. Uma canção velha e familiar!
Luxemburgo, Bukharin, Piatakov e muitos outros mais se utilizaram deste mesmo argumento contra o programa de autodeterminação nacional: sob o capitalismo é utópico, sob o socialismo reacionário. O argumento é falso até a mdeula dos ossos porque ignora a etapa da revolução social e suas tarefas. Com toda a segurança, sob a dominação do imperialismo é impossível uma independência genuína, estável e em que se possa confiar, das nações pequenas e medianas. Também é certo que no socialismo plenamente desenvolvido, que dizer, com a desaparição progressiva do Estado, desaparacerá também o problema das fronteiras nacionais. Porém também é certo que entre estes dois momentos, o do socialismo atual e o do socialismo realizado, transcorrerão décadas durante as quais nos prepararemos para concretizar o nosso programa. A consigna de uma Ucrãnia soviética independente é de importância excepcional para mobilizar as massas e educá-las no período transicional.
O secário simplesmente ignora o fato que a luta nacional, uma das formas da luta de classes mais labirínticas e complexas, porém, ao mesmo tempo, de extrema significação, não pode ser descartada apenas com simples referências à futura revolução mundial. Com suas vistas colocadas fora da União Soviética, sem receber suporte nem direção do proletariado internacional, as massas pequeno-burguesas e inclusive operárias da Ucrânia ocidental estão sendo vítimas da demagogia reacionária. Sem dúvida, se estão dando processos similares na Ucrânia soviética, ainda que seja mais difícil descobri-los. A consigna de uma Ucrânia independente, colocada a tempo pela vanguarda proletária, levará a uma inevitável estratificação da pequena-burguesia e facilitará às suas camadas inferiores a aliança com o proletariado. Apenas desta maneira é possível preparar a revolução proletária.
“Se os operários realizam com êxito uma revolução na Ucrânia ocidental [...] [persiste nosso autor] a nossa estratégia deveria ser exigir que a Ucrânia soviética se separe e se unifique ao setor ocidental? Precisamente deveria ser a oposta.” Esta afirmação demonstra bem claramente a profundidade da “nossa estratégia”. Novamente escutamos a mesma melodia: “Se os operários realizam...” O sectário se satisfaz com a dedução lógica a partir de uma revolução triunfante que se supõe já realizada. Porém, para um revolucionário o nó da questão consiste precisamente em como aplainar o caminho à revolução, como encontrar um caminho que a faça mais fácil às massas, como aproximá-la, como garantir o seu triunfo. “Se os operários realizem...” uma revolução vitoriosa, pode desconta tudo e ainda será belo. Porém, agora não há revolução vitoriosa; ao contrário, há uma reação vitoriosa.
Achar ao ponto que permita passar da reação à revolução; esta é a tarefa. De passagem, digamos que isto é o que propõe todo o nosso programa de consignas transicionais (O Programa de Transição). Não devemos nos surpreender que os sectários de todos os matizes não compreendem o seu conteúdo. Movem-se com abstrações, uma abstração do capitalismo e uma abstração da revolução socialista. O problema da transição do imperialismo real à revolução real, de como mobilizar as massas em cada situação histórica concreta para a conquista do poder, constitui para estes sabichões estéreis um segredo escondido à sete chaves.
Acumulando indiscriminadamente uma acusação sobre a outra, o nosso crítico declara que a consigna de uma Ucrânia independente serve aos interesses dos imperialistas (!) e dos stalinistas (!!) porque “nega completamente a posição de defesa da União Soviética”. É impossível comprender o que o leva a nos colar com “os interesses dos stalinistas”. Porém, nos limitemos ao problema da defesa da URSS. Poderia ver-se ameaçada por uma Ucrânia independente unicamente no caso em que esta fosse hostil não só à burocracia, mas também à URSS. Contudo, proposta esta premissa (obviamente falsa), como pode exigir um socialista que a Ucrânia hostil permaneça dentro dos marcos da URSS? Ou se refere só ao período da revolução nacional?
Não obstante, o nosso crítico aparentemente reconheceu que é inevitável uma revolução contra a burocracia bonapartista. Esta revolução, como qualquer outra, apresentará indubitavelmente determinados perigos desde o ponto de vista da defesa. Que fazer? Se o nosso crítico tivesse pensado realmente no problema nos retrucaria que aquele perigo é historicamente ineludível, já que sob a dominação da burocracia bonapartista a URSS está esmagada. O mesmo raciocínio se aplica, identicamente e total, à insurreição nacional revolucionária que representa nada mais que um segmento isolado da revolução política.
É notável que ao nosso crítico não lhe passe pela cabeça o argumento mais sério contra a independência. A economia da Ucrânia é parte integral do plano. A sua separação ameaçaria jogá-lo abaixo e diminuiria as forças produtivas. Porém, este argumento tampouco é decisivo. Um plano econômico não é um livro sagrado. Se as seções nacionais da federação, malgrado a unificação do plano, pressionam em direções opostas, significa que o plano não os satisfaz. Um plano está feito de homens. Pode ser reconstruído de acordo com as novas fronteiras. Na medida que o plano beneficie a Ucrânia, esta desejará estabelecer os acordos necessários com a União Soviética e encontrará o modo de fazê-lo, da mesma maneira em que chegará a estabelecer as alianças militares necessárias.
Mais ainda, é inadmissível esquecer que o governo rude e arbitrário da burocracia tem muito que ver com este plano econômico, e constitui uma pesada carga para a Ucrânia. Isto exige antes de tudo uma drástica revisão do plano. A casta governante está destruindo sistematicamente a economia do país, o seu exército e a sua cultura; está aniquilando a nata da população e preparando o terreno para uma catástrofe. Apenas uma reversão total pode salvar a herança da revolução. Quanto mais audaz e resoluta seja a política da vanguarda proletária, entre outros problemas, em relação à questão nacional, tanto mais exitoso se alcançará a reviravolta revolucionária e menor será seu custo posterior.
A consigna de uma Ucrânia independente não significa que esse país permaneceria isolada para sempre, apenas que tornará a decidir, por sua conta e livremente, as suas relações com os outros setores da União Soviética e com os seus vizinhos ocidentais. Suponhamos uma variante ideal, mais favorável para o nosso crítico. A revolução se dá simultaneamente em todas as partes da União Soviética. A aranha burocrática é estrangulada e varrida. O congresso constituinte dos sovietes estará na ordem do dia.
Ucrânia expressa o seu desejo de determinar novamente as suas relações com a URSS. Até nosso crítico, supomos, estará disposto a conceder-lhe este direito. Porém, para decidir livremente suas relações com as outras repúblicas soviéticas, para contar com o direito de dizer sim ou não, Ucrânia tem de recuperar a sua liberdade de ação total, ao menos enquanto dure este período constituinte. E, a isto não se pode nomear de uma outra maneira que independência do Estado.
Agora suponhamos que a revolução abarca também Polônia, Romênia e Hungria. Todos os setores do povo ucraniano se libertam e negociam a sua união com a Ucrânia soviética. Ao mesmo tempo expressam sua vontade de decidir sobre as relações da Ucrânia unificada com a União Soviética, Polônia soviética, etc. É evidente que para decidir estas questões será necessário convocar o congresso constituinte da Ucrânia unificada. Porém, um congresso “constituinte” não significa outra coisa que o congresso de um Estado independente que se prepara a determinar tanto o seu regime interno como a sua posição internacional.
Temos todas as razões para supor que em caso de triunfo da revolução mundial as tendências à unidade adquiririam imediatamente uma força enorme, e que as repúblicas soviéticas encontrarão as formas adequadas de se ligar de colaborar entre elas. Esta meta se conseguirá apenas se os antigos laços compulsórios, e em consequência as velhas fronteiras, se destruam completamente; só se cada uma das partes é totalmente independente. Para acelerar e facilitar este processo, para fazer possível no futuro uma fraternidade verdadeira entre os povos, os operários avançados da Grande Rússia tem de compreender já as causas do separatismo ucraniano, o potencial latente que alberga e que obedece a leis históricas. Tem de declarar, sem reservas, ao povo ucraniano que estão preparados apoiar com todas as suas forças a consigna de uma Ucrânia soviética independente, na luta comum contra a burocracia autocrática e o imperialismo.
Os nacionalistas ucranianos consideram correta a consigna de uma Ucrânia independente. Porém, se opõem a relacionar este consigna com a revolução proletária. Querem uma Ucrânia independente democrática e não soviética. Não cabe entrar aqui numa análise geral desta questão por que não tem que ver só com a Ucrânia, mas também com a caracterização geral da nossa época, o que já fizemos várias vezes. Delinearemos apenas os seus aspectos mais importantes.
A democracia está degenerando e desaparecendo, inclusive nos seus centros metropolitanos. Apenas os impérios mais ricos ou alguns países burgueses especialmente privilegiados podem manter ainda um regime democrático, e suficientemente degradado. A esperança que a Ucrânia, relativamente pobre e atrasada, possa estabelecer e manter um regime democrático não tem nenhum fundamento. Nem a independência da Ucrânia duraria muito num marco imperialista. O exemplo da Tchecoslováquia é, além disso, eloquente. Enquanto predominem as leis do imperialismo, o destino das nações pequenas e médias continuará sendo instável. Apenas a revolução proletária pode derrotar o imperialismo.
A atual Ucrânia soviética constitui o setor principal da nação ucraniana. O desenvolvimento industrial criou ali um poderoso proletariado claramente ucraniano. Está destinado a ser o dirigente do povo ucraniano nas suas lutas futuras. O proletariado ucraniano deseja liberar-se das garras da burocracia. A consigna de uma Ucrânia democrática é historicamente tardia. Serve talvez, apenas, para consolar os intelectuais burgueses. Não unificará as massas. E, sem massas são impossíveis a emancipação e unificação da Ucrânia.
O nosso severo crítico nos lança a cada momento a alcunha de “centristas”. Segundo ele, o artigo foi escrito de tal maneira que constitui o exemplo mais evidente de nosso “centrismo”. Porém, não faz a menor tentativa de demonstrar em que consiste exatamente o centrismo da consigna de uma Ucrânia soviética independente. Certamente, não é tarefa fácil.
Se nomeia centrismo à política que é pela sua essência oportunista e que pretende aparecer como revolucionária pela sua forma. O oportunismo consiste na adaptação passiva à classe governante e ao seu regime, ao já existente, incluindo, é claro, as fronteiras entre os Estados. O centrismo compartilha totalmente este traço de oportunismo, porém o oculta, para adaptar-se ao descontentamento dos operários, depois de comentários radicais.
Se partirmos deste definição científica veremos que a posição do nosso desafortunado crítico é parcial e completamente centrista. Começa considerando como algo imutável as fronteiras específicas que segmentam as nações (acidentais desde o ponto de vista da política racional e revolucionária). A revolução mundial, que para ele não é uma realidade viva senão um milagre de algum bruxo, tem que aceitar inevitavelmente estas fronteiras.
Não lhe interessam absolutamente as tendências nacionalistas centrífugas, que podem favorecer tanto a reação como a revolução, que violentam o seu quietista formulário administrativo construído em base à “primeiro” e “depois”. Se separa da luta pela independência nacional contra o estrangulamento burocrático e se refugia em especulações sobre a superioridade da unidade socialista. Em outras palavras, a sua política (se é que podemos nomear assim seus comentários escolásticos sobre a política de outras pessoas) apresenta as piores características do centrismo.
O sectário é um oportunista que tem medo de si mesmo. No sectarismo, o oportunismo (centrismo) nas etapas iniciais está dobrado como um delicado broto. Pouco a pouco se abre, um terço, a metade, às vezes mais. Depois, se aparece a peculiar combinação de sectarismo e centrismo (Vereecken); de sectarismo e oportunismo do mais baixo (Sneevliet). Porém, às vezes o broto murcha sem se abrir-se (Oehler). Se não me equivoco, Oehler é o diretor de O Marxista.
Notas de rodapé:
(1) N.T.: O colapso do Império Austro-Húngaro na I Guerra Mundial; a Revolução Russa de 1917 e as declarações de independência ucranianas e outros fatos culminaram em 1921 no Tratado de Paz de Riga. Esta negociação terminou com a Guerra Polonesa-Soviética (1919-1920). Nesse tratado participaram os governos da Polônia, da República Socialista Federativa Soviética Russa (RSFSR) e da República Socialista Soviética Ucraniana (RSSU). Novamente se dividiu a Ucrânia, ficando a parte oriental integrada à República Socialista Soviética Ucraniana e, a partir de 1922, à URSS. A parte ocidental passou ao controle da Polônia e a região da Transcarpátia acabou dividida entre Tchecoslováquia e Romênia. Só com o término da Segunda Guerra Mundial ocorrerá a reunificação da Ucrânia, ainda como parte da União Soviética, se tornando independente desta com a implosão soviética 1991.