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Michael Lowy: o marxismo de Daniel Bensaid em seis tempos

Cinco resenhas e um balanço provisório da vida e obra de Daniel Bensaid

1 de novembro de 2021

[Reunimos sobre este título cinco resenhas feitas por Michael Löwy de cinco livros de Daniel Bensaïd publicados entre 1995 e 2001, obras que recolhem o período mais fertil na atividade criativa do filósofo e militante francês, começando pelas duas obras que sistematizam sua reinterpretação da obra de Marx. As quatro primeiras foram publicadas no jornal Em Tempo e a quinta foi traduzida diretamente do site Daniel Bensaïd. Elas são complementadas por um sexto texto publicado, um ano depois da morte de Daniel, em janeiro de 2010, no Blog da Boitempo.

Os livros de Bensaïd (e as resenhas) foram publicados no período de auge da globalização neoliberal, entre o colapso da União Soviética, em 1991, e o início do altermundialismo, com as manifestações contra a OMC, em Seattle, em fins de 1999 e a realização do primeiro Fórum Social Mundial, em janeiro de 2001 - apenas entrecortado pelo levante zapatista dos indígenas maias, em 1994.

Estas resenhas constituem um diálogo dentro do marxismo aberto que estes autores e ativistas estruturam e desenvolvem na IV Internacional, na hora mais adversa para o pensamento crítico, em que a grande maioria da esquerda tradicional é domesticada pelo mercado.

Como afirma em outra ocasião, Michael Löwy, "entre os méritos de Daniel Bensaïd, destaca-se o fato de ter introduzido no léxico marxista um novo conceito: bifurcação. Sua releitura de Marx, à luz de Blanqui, Benjamin e Charles Péguy, levou-o a conceber a história como uma série de entroncamentos e bifurcações, um campo de possíveis em que a luta de classes ocupa um lugar decisivo, mas cujo resultado é imprevisível. Refratária ao desdobramento causal dos fatos ordinários, a revolução é uma interrupção. Ela não é garantida pelas “leis da história” e deve ser objeto de uma aposta, no sentido pascaliano, revisada e corrigida pelo marxista Lucien Goldmann, ele próprio revisado e corrigido por Daniel Bensaïd". (J. C.)]

Sob os escombros, o recomeço

Michael Löwy, Em Tempo 285, dezembro de 1995

“La discordance des temps. Essais sur les crises, les classes, l’histoire”. Editions de la Passion. Paris, 1995, 301 pags.

Daniel Bensaid acaba de publicar na França duas obras sobre Marx e o marxismo: A discordância dos tempos” (“La discordance des temps. Essais sur les crises, les classes, l’histoire”. Editions de la Passion. Paris, 1995, 301 pags.) e “Marx, o intempestivo” (“Marx, I’ntempestif. Grandeurs et misères d’une aventure critique”. XIX-XX siècles) Em Tempo resenha aqui o primeiro deles, além  de publicar um extrato do capítulo desta obra intitulado “Globalização: nações, povos, etnias” (Globalização e cidadania, p. 10-11).

A discordância dos tempos, livro apaixonante, apresenta-se como uma coletânea de ensaios, na maior parte inéditos, sobre assuntos muito diversos: a economia, as classes sociais, a história. Entretanto, ele não deixa de se constituir num conjunto dotado de uma profunda coerência, não apenas graças a um tema unificador, a temporalidade desconectada, mas sobretudo graças a uma certa tonalidade, um certo estilo, uma certa fonte: a dos revolucionários que se recusam a se render.

A diagonal de classes

Mas esta obra é importante também por uma outra razão. Daniel Bensaid nos ajuda a retirar dos escombros os materiais para um recomeço. Sob a tripla estrela de Charles Péguy, Leon Trotsky e Walter Benjamim - três vencidos que não se dobraram aos vereditos da pretendida razão histórica, a saber, a razão do mais forte - ele esboça a imagem de um marxismo novo, desperto do longo sono dogmático, desembaraçado da nefasta hipoteca estatista, livre dos pesados grilhões do positivismo e da camisa de força do progresso linear. Um marxismo crítico, que se distancia do modelo científico naturalista (“a inelutabilidade de um processo natural”) - ainda presente em certas passagens de O Capital - para optar, resolutamente, pela lógica dialética de uma história aberta.

O livro é composto de três grandes partes, respectivamente consagradas aos ritmos econômicos e às crises, às relações entre a luta de classes e as outras formas de conflito, à ensaios críticos sobre a razão histórica.

Em cada uma das partes, o procedimento do autor consiste em utilizar a ponta afiada da negatividade marxista-crítica. Destacando, por exemplo, que o mercado não é simplesmente uma forma da “contratualidade” mas uma ditadura impessoal das coisas, produto de muitas décadas de medidas coercitivas. E que, em conseqüência, a transição ao socialismo não é possível sem a “desmercantilização” da economia e sua submissão a uma outra lógica, “política no sentido nobre e cívico do termo”, orientada pela satisfação das necessidades democraticamente determinadas.

Ou ainda que, rechaçando enfaticamente a posição dos pós-modernos, que negam todo vetor de univerzalização suscetível de articular as diferentes contradições, abandonando os indivíduos ao turbilhão de interesses fragmentários, ao parcelamento identificatório generalizado que é, no fundo, a avatar último do fetichismo da mercadoria.

Contra as miragens da razão histórica que acredita poder deduzir da mundialização das trocas o fim do nacionalismo agressivo (como Habernas), Bensaid mostra que a concorrência liberal multiplica as desigualdades e alimenta os ressentimentos: a universalização da economia, o cosmopolitanismo mercantil, de um lado, o fetichismo mórbido da terra, de outro, são dois lados da mesma moeda. A paciente reconstrução das solidariedades de classes, da fraternidade pela base, permanece o único fio vermelho permitindo encontrar a saída do labirinto das identidades.

Não se  trata de reduzir o conflito social apenas ao choque de classes, mas de analisar as articulações entre estes e os outros antagonismos sociais (hierárquicos, sexuais, nacionais, étnicos): a “diagonal de classes” liga sem confundir estas múltiplas figuras do conflito.

Ponto culminante

A terceira parte do livro - “História, fim e continuidade” - é, na minha opinião, a mais instigante, porque é a mais marcada pela subjetividade do autor. Aí, Daniel Bensaid destaca admiravelmente as afinidades eletivas entre o socialista romântico francês Péguy e Walter Benjamin, que partilham da mesma recusa da ideologia do progresso linear, do mesmo interesse pelos mesmos “estrondos à distância” - que permitem “comunicar as épocas, renascer os instantes perdidos e iluminar os astros extintos”- a mesma visão do acontecimento como interrupção e insurreição.

O último capítulo - “O grande Karl morreu? - é o verdadeiro ponto culminante da obra. Reflexão crítica sobre um fim de século contra-revolucionário, este texto, de um grande conteúdo moral e político, gira em torno de uma questão vital: “Pode-se ficar sem um horizonte utópico, sem projeto, sem outro que este círculo vicioso da mercadoria? Pode-se resignar à repetição do capital e à sua infernal eternidade?” Os autores, os intelectuais, os movimentos políticos são julgados, segundo respondam ou não pela negativa esta questão.

A única ressalva que este livro me inspira é a palavra “espera”: trata-se de uma “espera inquieta”, de “vigiar a linha movediça do horizonte” a irrupção do acontecimento, ou onde “espreita uma nova aparição messiânica carregada de significados inéditos”. Em seu capítulo sobre Bloch e Benjamin, o messianismo secularizado deste último definido como “a espera ativa e inquieta da sentinela”.

Ora, o messianismo revolucionário de Benjamin - contrariamente àquele dos rabinos ortodoxos - não consiste precisamente em não “esperar” o acontecimento messiânico mas em o provocar? Porque cada geração é dotada de uma força messiânica; não é a ação revolucionária, aqui e agora, que constitui a forma secularizada do messianismo?

É o que pensa o próprio Daniel Bensaid, para quem “tudo não cessa de se reencontrar no presente, que não é uma categoria específica da história, mas da política enquanto pensamento estratégico de cruzamentos e bifurcações”.

Como pensar a revolução num momento em que a Restauração triunfa em toda extensão? “Nós não estamos preparados”, lembra Bensaid, “para não nos apoiarmos numa indestrutível montanha mágica. O que foi feito não será mais refeito. Quaisquer que sejam os desvios e os atrasos do percurso, não retornaremos a estes atos fundadores”. Ora, subestimamos o impacto da obliteração e da devastação do estalinismo. Potência capaz de apagar não somente Outubro mas ainda o acontecimento Marx?

Apesar de tudo, “a passagem do tempo não tem o poder de abolir o poder profético do acontecimento. Nada pode fazer com que aquilo que um dia retumbou seja abafado”. Bensaid cita a este respeito as palavras de um eminente pensador: “Um  tal fenômeno na história da humanidade não se esquece jamais ... Porque este acontecimento é muito importante, muito misturado aos interesses da humanidade e de uma influência muito vasta sobre todas as partes do mundo para não ser colocado na memória dos povos na ocasião em que circunstâncias favoráveis e recuperado quando da retomada de novas tentativas deste gênero”. Estas linhas, escritas por Kant em 1795, à sombra do Thermidor, não perdeu sua atualidade duzentos anos mais tarde… 

Marx, a aventura continua

Michael Löwy, Em Tempo 287, abril de 1996

Resenha de Daniel Bensaïd. Marx, I’intempestif: Grandeurs et misères d’une aventure critique”. XIX-XX siècles. Paris: Fayard, 1995.

Contraponto e complemento de A discordância dos tempo, Marx, o intempestivo, conduz-nos mais longe, para bem além dos sistemas fechados, das ideologias petrificadas na forma de muros, para uma aventura intelectual e política  inacabada. Trata-se de fazer-nos escutar, em lugar do barulho ensurdecedor dos marxismos instituídos, a “trombeta inaudível” que constitui a obra marxiana. O contexto não tem nada de acadêmico: restituir a força subversiva de uma teoria crítica da luta social e da mudança do mundo, traduzida pelos epígonos na pequena música do positivismo.

Uma nova leitura

O que constitui a força e o interesse deste livro é que ele nos traz não somente uma leitura nova dos escritos de Marx, mas abre, a partir deles, uma série de caminhos novos, de importância decisiva para o futuro do pensamento crítico. Esta abertura se inspira nos trabalhos de dois grandes guias, Walter Benjamim e Antônio Gramsci, que nos ajudam a despertar o marxismo do “ culto sonolento do progresso”.

Este procedimento exige uma atitude resolutamente heterodoxa e crítica em relação  ao próprio Marx, cuja obra é atravessada pelas contradições não resolvidas entre a ciência  positiva e a “ciência alemã”, entre os cantos de sereia do progresso e uma visão dialética da história - que geram, por sua vez a pluralidade contraditória de marxismos.

O livro se divide em três partes: Marx crítico da razão histórica, da razão sociológica e da positividade científica. Apesar das aparências, está longe de ser uma obra sistemática. Como freqüentemente em Daniel Bensaid, é a profusão estonteante de idéias que faz a riqueza do todo...

Concepção de história

A concepção de história em Marx é atravessada por uma contradição não resolvida ente o modelo científico naturalista - que prediz o fim do capitalismo “com a inelutabilidade de um processo natural” - e a lógica dialética aberta. Enquanto certos textos de Marx - sobre a missão civilizadora do capitalismo ou sobre o colonialismo inglês na Índia - não estão longe de cair  nas armadilhas da ideologia “progressista”, outros (como a introdução dos Grundrisse) esboçam uma ruptura profunda com a visão linear e homogênea da história, e com a noção de progresso “em sua forma abstrata habitual”. Graças a noções como o contratempo (zeitwidrig) e a discordância dos tempos, Marx inaugurou uma representação não linear do desenvolvimento histórico.

Enquanto os epígonos — dos “ortodoxos” da Segunda Internacional até os “marxistas analíticos” como Jon Elster ou John Roemer — não fazem mais do que “desmontar e remontar tristemente o cansativo Meccano das forças e das relações, das infra-estruturas e das superestruturas”, a visão marxiana de uma história aberta inspirou Trotsky, na teoria do desenvolvimento desigual e combinado (e na estratégia da revolução permanente), e Ernest Bloch, em sua análise da não-contemporaneidade das classes e das culturas na Alemanha de Weimar.

Cegos pelo primado unilateral das forças produtivas, as leituras do progresso - das quais os “marxistas analíticos” são apenas a última encarnação - apenas o concebem em termos de avanços e de recuos sobre um eixo cronológico; só imaginam o desastre - como o fascismo - sob a forma do retorno a um passado acabado ou suas sobrevivências residuais, “em lugar de alertar contra as formas inéditas, originais e perfeitamente contemporâneas de uma barbárie que é sempre aquela de uma presente particular, uma barbárie de nosso tempo”.

O espaço da estratégia

O que as leituras positivistas de Marx não compreendem é que, diferentemente da predição física, a antecipação histórica se exprime em um projeto estratégico. Para um pensamento estratégico, a revolução é por essência  intempestiva e “prematura”. Marx não julga a revolta dos oprimidos em termos de “correspondência” entre forças e relações de produção: ele está “sem hesitação nem reserva do lado dos rebelados na revolta dos componeses, dos niveladores na Revolução Inglesa, dos iguais na Revolução Francesa, dos comunardos a serem esmagados pelos conservadores”.

Daniel Bensaid avança aqui uma das mais belas iluminações profanas: a distinção entre o oráculo e o profeta. O marxismo não é predição oracular de um destino implacável, mas uma “profecia condicional”, um “messianismo ativo” que trabalha as dores do presente. A profecia não é espera resignada, mas denúncia do que ocorrerá de mal se... como em A catástrofe eminente e os meios de a conjurar, de Lenin. Entendida nestes termos, “a profecia é a figura emblemática de todo discurso político e estratégico”.

No mundo da mercadoria, a abstração do relógio e a abstração monetária caminham lado a lado, “tempo é dinheiro”. O tempo sem qualidade de um deus cronometrista, este tempo sem memória nem música, este tempo desesperadoramente vazio, é também aquele da acumulação do capital: o progresso segundo a burguesia. Marx é um pioneiro da crítica da razão burguesa da história, que será desenvolvida também, a sua maneira, pelos românticos. Donde a importância de alguns grandes condutores entre a crítica romântica e a crítica revolucionária: Blanqui, Peguy, Sorel. Mas é sobretudo a Walter Benjamin que devemos um materialismo histórico que iria abolir a idéia de progresso, a favor das interrupções e das passagens.

Esta primeira parte do livro é, sem dúvida, a mais rica e a mais “profética”. Mas encontramos também nas outras duas pistas interessantes.

Relações dialéticas de luta

Marx crítico da razão sociológica: enquanto a sociologia positivista, biomecânica, dos Comtes, Durkheim e epígonos se esforça por reduzir os fatos sociais a coisas — em uma lógica que, no fundo, não faz mais do que reproduzir o fetichismo do universal mercantil — a sociologia marxiana, crítica e negativa, trata-os como relações sociais conflituosas, relações dialéticas de luta.

Sujeitos desta luta, as classes sociais não são nem a soma das individualidades que as compõem nem uma espécie de “pessoa” mítica. Ora, o marxismo analítico de Jon Elster substitui a crítica da economia política pela psicologia social: privilegiando o individualismo metodológico, termina por fazer o pertencer a uma classe uma questão de “escolha racional” do indivíduo, e da exploração uma relação interindividual. A própria luta de classes é reduzida por John Roemer aos esquemas da teoria dos jogos e aos cálculos racionais dos “jogadores”.

A outra tentativa de “racionalizar” a luta de classes é a teoria da justiça de Rawls, complemento ético-jurídico perfeito de um liberalismo social bem temperado. O conflito social é esvaziado em benefício de uma atomística de procedimentos contratuais e da ficção formalista do acordo mútuo.

Crítica da positividade científica

No coração de todos estes debates se encontra a questão do método: Marx, crítico da positividade científica. Na última parte do livro, Daniel Bensaid

nos mostra, na obra de Marx, o dilema não resolvido, mas fecundo, entre a “ciência inglesa” e a “ciência alemã”, positivismo empirista e/ou racionalista e concepção dialética do conhecimento. Fascinado pelo sucesso das ciências naturais. Marx foi freqüentemente enganado por seu modelo. Mas a tendência principal que inspira sua crítica da economia política é aquela de um “outro saber” que associa teoria e crítica, e que resolve a antinomia da necessidade e da liberdade no aleatória da luta.

Marx é, portanto, herdeiro da “ciência alemã” de Hegel e de Goethe, rica em profundidade filosófica e em criatividade metafórica, que encontra sua origem no desafio romântico face ao surgimento da razão instrumental, e a ascenção da “água rala de um racionalismo gasto e sem vida” (Hegel).

Mas não se trata apenas da Alemanha. Assiste-se no curso do século XIX a uma subversão radical do fundamento epistemológico. De Newton a Marx (passando por Carnot e Darwin), escreve Bensaid em uma fórmula impactante, assistimos “à grande passagem dos relógios para as nuvens”, isto é, do determinismo mecânico e linear para uma nova lógica autenticamente multidimensional e dinâmica, aquela dos tempos partidos e em desacordo, de assimetrias e de probabilidades, de incertezas e de escolhas. O tempo histórico reencontra seus ritmos e suas articulações, “o climamen cheio de novidade e o kairos pleno de oportunidades estratégicas”.

A principal crítica que eu faria à parte III (sobre a ciência em Marx) é a ausência de relação com a parte II (sobre a luta de classes) A grande questão — no centro da História e consciência de classe de Lukacs e também  das Teorias  da mais-valia de Marx — da relação entre posição de classe e conhecimento da sociedade não é tratada. Confrontado com a célebre passagem de O Capital  onde Marx se refere à sua crítica da economia política como representante do ponto de vista do proletariado, nosso autor se limita a manifestar suas reservas: “A imagem de uma classe representada pela crítica levanta, de fato, mais questões do que resolve”.

De outro lado - mas as duas questões estão estreitamente ligadas na medida em que a luta de classes atravessa as ciências sociais e não (com poucas exceções) as ciências naturais - ele se deixa levar pela miragem de um “novo paradigma holista de saber científico” (a partir das teorias do sistemas de teorias dos caos), que tornaria agora “fora de moda” a distinção entre ciências da natureza e da sociedade. O último capítulo desta parte, curiosamente intitulado Os tormentos da matéria é uma apaixonante discussão da ecologia como ciência e como política.

Reconhecendo que seria abusivo tanto exonerar Marx das ilusões prometéicas de seu tempo quanto transformá-lo num defensor da industrialização desenfreada, Daniel Bensaid nos propõe um procedimento bem mais fecundo: instalar-se nas contradições de Marx e levá-las a sério. A primeira destas contradições sendo, certamente, aquela entre o credo produtivista de certos textos e a intuição que o progresso pode ser fonte de destruição irreversível do ambiente natural.

Ecologia política

A principal limitação deste capítulo me parece ser a tendência - que encontramos também em muitos ecologistas políticos - de abordar o problema prioritariamente sob o ângulo do cálculo dos fluxos energéticos e da penúria de recursos naturais. Neste contexto, não é surpreendente que nosso autor recuse as “ideologias crepusculares” e chegue à conclusão otimista que nós não estamos ameaçados por uma penúria absoluta de energia, pois “é sempre possível que a humanidade descubra outras fontes de energia”. Que seja. Mas a ameaça de catástrofe ecológica se situa em outro nível, bem mais perigoso e iminente: a poluição (isto é, o envenenamento) do ar, da terra e da água, o aquecimento do planeta, a destruição da camada de ozônio. Não é a “penúria”, mas a própria sobrevivência da espécie humana que está em jogo!

Em compensação, Daniel Bensaid dá uma contribuição notável para uma futura e necessária convergência entre marxismo e ecologia política, mostrando que ambos se confrontam com um inimigo comum: o fetichismo mercantil, o egoísmo de vista curta do capital e da burocracia. Ambos colocam a necessidade de reentrelaçar a economia em uma totalidade de determinações ecológicas e sociais. Enfim, ambos exigem uma transformação do próprio modo de produção e a abolição da ditadura dos critérios mercantis.

Esta convergência implica que a ecologia renuncie às tentações do naturalismo anti-humanista e abandone sua pretensão de substituir ou absorver a crítica da economia política. Mas ela implica também que o marxismo se desvencilhe do produtivismo, substituindo o esquema mecanicista da oposição entre o desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção que o entrava pela idéia, bem mais fecunda, de “uma transformação das forças potencialmente produtivas e forças efetivamente destrutivas”.

Moral da história: contrariamente aos rumores maldosos, Marx não está esmagado sob os escombros do muro de Berlim. Graças a espíritos insubmissos como Daniel Bensaid, a aventura continua...

Enigma e melancolia da aposta revolucionária

Michael Löwy, Em Tempo 301, junho 1998

Resenha de Daniel Bensaïd. Le pari mélancolique. Paris: Fayard, 1997.

Cada novo livro de Daniel Bensaid, depois de alguns anos, constitui uma contribuição a um vasto trabalho de reconstrução da cultura revolucionária e da reflexão marxista, que nos tira dos caminhos conhecidos e oferece uma formidável brisa de ar fresco. Seu último trabalho, A aposta melancólicaLe pari mélancolique (Paris: Fayard, 1997, 300 p.) — é um grito de protesto contra o ar dos tempos, contra o desencantamento morno que assiste os novos fetiches profanos, monetários e mercantis, substituir os velhos ídolos sagrados.

A multiplicidade de referências trabalhadas desnorteia num primeiro momento: Marx, Lenin e Trotsky, mas também Blanqui, Péguy, Hannah Arendt, Walter Benjamin, sem esquecer Pascal, Chateaubriant, Kant, Nietzsche e uma multidão de autores “menores”. Apesar dessa diversidade, aparentemente eclética, o discurso é de uma bela coerência.

Do desequilíbrio do mundo

Eu estou longe de partilhar de todos os posicionamentos do autor. Por exemplo, sua admiração pela justiça dos jacobinos; ou pelo leninismo de antes de 1905 (Que fazer?), baseado na idéia, bem discutível, que o socialismo é “introduzido de fora” do proletariado; ou ainda pelo “antimoralismo” de Trotsky em Sua moral e a nossa, que rejeita como “tímido pseudônimo filosófico de Deus” toda moral “situada acima das classes”! Eu poderia multiplicar os exemplos. Mas como não reconhecer a força e a inteligência do conjunto?

A primeira parte do livro é um diagnóstico lúcido do “desequilíbrio do mundo” que resulta da globalização capitalista. Ele constata, inicialmente, a partir de uma perspectiva ecológica, a discordância explosiva entre o tempo mercantil e o tempo biológico. A regulação mercantil é de curto prazo. Sua lógica deprecia o futuro e ignora os efeitos da irreversibilidade próprios da biosfera. Ela pressupõe uma natureza explorável e dócil. Como escreveu este grande precursor do liberalismo contemporâneo que é Jean-Baptiste Say, “as riquezas naturais são inesgotáveis, porque sem isso não as obteríamos gratuitamente”. Enquanto os ritmos naturais se harmonizam nos séculos ou milênios, a razão econômica capitalista procura ganhos rápidos e lucros imediatos.

A biosfera, destaca Daniel Bensaid apoiando-se nos trabalhos de René Passet, possui sua própria racionalidade imanente, irredutível à razão mecânica do mercado. Os valores ecológicos não são conversíveis em valores mercantis e vice-versa.

A globalização é atravessada também de uma outra contradição, não menos perigosa: a racionalidade formal da mundialização capitalista favorece, por toda parte, a irracionalidade dos pânicos de identidade, a universalidade abstrata do cosmopolitismo mercantil desencadeia os particularismos e reforça os nacionalismos. Neste universo regido pela lei do lucro, submetido à tirania sem rosto do capital, os muros não são abolidos, eles se deslocam: veja-se a Europa de Schengen, cercada de torres de vigia.

O internacionalismo de classe permanece a melhor resposta face aos nacionalismos tribais e aos imperialismos. Ele é o herdeiro da universalidade da razão proclamada pela filosofia das luzes e da concepção revolucionária da cidadania – aberta aos estrangeiros – da constituição republicana de 24 de junho de 1793, adotada por uma Convenção onde tinham lugar — mas não por muito tempo! — Anarcharsis Cloots e Thomas Paine. Enfim, a solidariedade com o “outro” se apoia em uma velha antiga tradição que remonta ao Velho Testamento: você não oprimirá o estrangeiro porque vocês foram estrangeiros — e sem-papéis —  no país do Egito...

Da profecia na resistência

Reencontramos a referência ao Velho Testamento na última parte do livro, “A revolução em seus labirintos”, sem dúvida a mais inovadora e a mais “inspirada” da obra. O profeta bíblico, com já tinha sugerido Max Weber em seu trabalho sobre o judaísmo antigo, não procede por ritos mágicos, mas convida a agir. Contrário à postura de expectativa apocalíptica e aos oráculos de um destino inexorável, a profecia é uma antecipação condicional, que procura conjurar o pior, mantendo aberto o leque de possíveis.

Na origem da profecia, no exílio babilônico, se encontra uma exigência ética forjada na resistência a toda razão de Estado. Esta grande exigência atravessa os séculos: Bernard Lazare, o dreyfusiano e socialista libertário era, segundo Péguy, um exemplo de profeta moderno, animado por uma “força de amargura e de desilusão”, um sopro indomável de resistência à autoridade. Aqueles que resistiram aos poderes e às fatalidades, todos estes “príncipes do possível” que são profetas, heréticos, dissidentes e outros insubmissos, sem dúvida freqüentemente se enganaram. Mas nem por isso eles deixaram de traçar uma trilha, que salvou o passado oprimido da rude pilhagem dos vencedores.

Segundo Daniel Bensaid, há profecia em toda grande aventura humana, amorosa, estética ou revolucionária. A profecia revolucionária não é uma previsão, mas um projeto, sem nenhuma garantia de vitória. A revolução, não como modelo pré-fabricado, mas como hipótese estratégica, permanece o horizonte ético sem o qual a vontade renuncia, o espírito de resistência capitula, a fidelidade desaparece, a tradição (dos oprimidos) é esquecida. Sem a convicção de que o círculo vicioso do fetichismo e a ronda infernal da mercadoria podem ser quebrados, o fim se perde nos meios, o objetivo no movimento, os princípios na tática.

Da aposta no combate revolucionário

A idéia de revolução se opõe ao encadeamento mecânico de uma temporalidade implacável. Refratária ao desdobramento causal dos acontecimentos normais, ela é interrupção. Momento mágico, a revolução remete ao enigma da emancipação, em ruptura com o tempo linear do progresso, esta ideologia de caixa de previdência, tão violentamente denunciada por Péguy, onde cada minuto, cada hora que passa, são pressionados a dar sua pequena contribuição para o crescimento e o aperfeiçoamento.

O tempo e o espaço da estratégia revolucionária se distinguem radicalmente daquele da física newtoniana, “absolutos, verdadeiros, matemáticos”. Trata-se de um tempo heterogêneo, kairótico – isto é, pontuado por momentos propícios e oportunidades a serem capturadas. Mas diante de uma encruzilhada de possibilidades, a decisão final comporta uma parte irredutível de aposta.

Segue-se daí que o engajamento político revolucionário não está baseado em nenhuma “certeza científica” progressista, mas em uma aposta racional sobre o futuro. Daniel Bensaid se baseia aqui em trabalhos notáveis – hoje frequentemente esquecidos – de Lucien Goldmann sobre Pascal: a aposta é uma esperança que não pode ser demonstrada mas sobre a qual se engaja toda a existência. A aposta é inelutável, em um sentido ou em outro. Como escreveu Pascal, deve-se apostar, somos obrigados. Na religião do deus oculto (Pascal) como na política revolucionária (Marx), a obrigação da aposta define a condição trágica do homem moderno.

Porque, todavia, esta aposta é melancólica? O argumento de Daniel Bensaid é de uma lucidez impressionante: os revolucionários, escreve — Blanqui, Péguy, Benjamin, Trotsky ou Guevara — tem a consciência aguda do perigo, o sentimento de recorrência do desastre. Sua melancolia é a da derrota, uma derrota “inúmeras vezes recomeçada” (Péguy). Benjamin presta homenagem, em uma carta da juventude, à grandeza da “fantástica melancolia  controlada” de Péguy. Esta melancolia revolucionária do inacessível, sem resignação nem renúncia, distingue-se radicalmente, segundo Bensaid, da aflição impotente do inelutável e das lamentações pós-modernas sobre a falta de finalidade, com sua estetização de um mundo desencantado. Nada é mais estranho ao revolucionário melancólico do que a fé paralisante em um progresso necessário, em um futuro garantido. Pessimista, ele recusa a capitular, a ceder diante da derrota. Sua utopia é a do princípio da resistência à catástrofe provável.

Graças a esta última parte, o livro de Daniel Bensaid torna-se muito mais do que um comentário inteligente da atualidade ou um diagnóstico crítico da crise: com sua aposta melancólica, ele nos brinda com um olhar novo sobre a esperança, um olhar que nos ajuda a restabelecer a circulação entre a memória do passado e a abertura do futuro. Sem otimismo beato, sem ilusão sobre os “amanhãs que cantam”, sem nenhuma confiança nas “leis da história”, ele afirma a necessidade, a urgência, a atualidade da aposta revolucionária.

Elogio a resistência ao ar dos tempos

Michael Löwy, Em Tempo 310, outubro 1999

Resenha de Daniel Bensaïd. Éloge de la résistance à l’air du temps, entrevista com Philippe Petit, Paris: Éditions Textuels, 1999.

Eis um pequeno livro que se lê com um vivo prazer. Devemos seguir, sob a forma de entrevistas entrecortadas, um pouco des­costuradas, o movimento de um espírito livre que perdeu suas certezas mas não suas convicções. Um espírito que celebra a resistência à retórica da resignação, este discurso extraordinariamente pouco razoável - mas dominante - segundo o qual o capitalismo seria o fim da história, “o ponto final onde todo mundo desce”.

Trata-se, inicialmente, de reabilitar a ação política contra os grandes mecanismos deterministas da “razão histórica" ou, pior ainda, do automatismo mer­cantil. Uma ação política que está intimamente ligada ao conflito social e que encontra – segundo a aposta melancólica de Marx - na luta de classes o principal vetor de uma universalização concreta e o meio privilegiado de quebrar a escalada mortífera das identidades exclusivas – étnicas, religiosas, nacionais, tribais. Esta refundação do político se inspira em Hannah Arendt, mas também – e sobretudo – nos grandes dissidentes do socialismo, estes pensadores anti-positivistas em busca de uma concepção não-linear do tempo: Charles Péguy, Walter Benjamin. Ligados por uma afinidade secreta, esses dois heréticos abriram “uma passagem inédita para uma releitura crítica de Marx”. Eles fazem parte, com Gramsci, Mariátegui, Victor Serge, os surrealistas e a revista Critique Sociale, de uma corrente crítica subterrânea do fetichismo histórico e da ideologia do progresso, cuja expressão filosófica e política madura são as célebres “Teses sobre o conceito de história” de Benjamin.

Não temos necessidade de compartilhar todos os argumentos de Daniel Ben­said – pessoalmente não estou de acordo com suas críticas ao conceito de humanidade, considerado como uma “caixa de Pandora jurídica” - para apreciar a força da crítica e subversiva de seu discurso. Um discurso que não exita em se reclamar da grande tradição messiânica do Antigo Testamento, aquela que não a­nuncia um destino implacável (co­mo o oráculo grego) mas se anuncia de modo condicional: eis o que acontecerá se... Este condicional é um convite à ação, um sinal de alarme face à uma corrida para o abismo (Benjamin): ao contrário do fatalismo mecânico, ele designa “a catástrofe iminente e os meios de conjurá-la” (Le­nin). Para este mes­sia­nismo profano e laicizado, a revolução – esta idéia de uma mudança radical que estrutura as esperanças há dois séculos – permanece sempre atual: é uma escapada para além da ordem es­tabe­lecida, um ponto de fuga possível, uma brecha no muro, uma forma de captar nas fendas do acontecimento as promessas intermitentes da humanidade e da universalidade. Se as concepções estratégicas do passado - de inspiração político-militar foram ultrapassadas, permanece o essencial: o sentimento que o mundo tal como ele é não é nem fatal nem eterno. Que ele não pode durar. E que ele deve mudar: não há razão para que o Capital seja a última palavra da aventura humana.

Nossa época – o fim do século XX – se apresenta como um imenso campo de ruínas, um grande cemitério de esperanças. Resta saber se os efeitos deses­tru­tu­radores da lógica mercantil – ato­mi­zação, fragmentação social – são universais. Sem otimismo excessivo, Da­niel Bensaid percebe os primeiros sinais, frágeis e incertos, de um recomeço, uma refundação.

Herança comunista

Mas atenção: o novo capítulo não pode ser escrito esquecendo-se o anterior. Existe uma herança a ser retrabalhada e retransmitida. E nesta herança, certas palavras, certos conceitos tem um lugar importante: “As palavras tem sua vida própria, na relação com experiências e uma memória coletiva. O “comunismo” tem uma longa história, para melhor e para pior. Ela permanece, aos nossos olhos, o conceito mais precioso do ponto de vista histórico e programático. Não se confunde com o estalinismo, que é o nome de uma terrível contra-revolução burocrática. Admitir que se deve deixar de ser comunista quando se combate o stalinismo, seria ratificar a identificação estalinismo/comunismo desejada pelos estalinistas. Reconhecer-lhes uma espécie de vitória póstuma”. Neste empreendimento de refundação revolucionária, ele declara sua dívida para com os grandes heréticos derrotados sem terem se rendido, sem terem se integrado ao cortejo dos vencedores: Saint-Just, Blanqui, Trotsky, Joana dArc. Estes “príncipes do possível” trabalharam para a incerteza, sem garantia de vitória.

Mais ainda do que o programa possível de uma “esquerda da esquerda”, Ben­said nos oferece nesta pequena obra informal e direta, pistas preciosíssimas para voltar a fazer da política uma ética profana, inscrevendo o conflito social em um horizonte de universalidade.

Os Irredutíveis

Michael Löwy, Site danieldensai.org

Resenha de Les irréductibles : théorèmes de la résistance à l'air du temps. Paris: Textuel, 2001

Este pequeno e belo livro de Daniel Bensaïd é apresentado como uma sucessão de teoremas, seguido de corolários e escólias. Mas o texto não é - felizmente - uma demonstração matemática, geométrica ou espinozista: é simplesmente uma técnica expositiva que permite colocar ideias em ordem... O autor parte de uma questão fundamental: o futuro deve ser reduzido a uma repetição infernal da ordem existente e a história imobilizada em uma eternidade mercantil? Sua resposta é obviamente negativa, mas ele se propõe a colocar as categorias de progresso e universalidade à prova da catástrofe e do desastre. Os termos do debate referem-se diretamente aos escritos sobre a história de Walter Benjamin, um autor que não cessou de inspirar e assombrar o pensamento de Daniel Bensaïd.

Teorema 1 - A política é irredutível à ética e à estética

É uma questão de restaurar a dignidade da política - como um projeto, uma vontade e uma ação coletiva - que atualmente está pressionada entre as restrições do horror econômico e o gemido de um moralismo abstrato. A política implica a contingência estratégica, a arte estratégica do possível, que aproveita as bifurcações abertas à esperança, e que é irredutível à necessidade econômica, à "majestosa eternidade das estruturas".

Teorema 2 - A luta de classes é irredutível ao pertencimento comunitário

A crise ou declínio da consciência de classe favorece o surgimento de pânicos identitários e conflitos comunitários em toda parte, uma tendência global preocupante que não pode de forma alguma ser interpretada como o produto dos últimos sobressaltos do totalitarismo. Aqui e ali, vemos aparecer figuras sinistras - Putin, Haider - que celebram o casamento de sangue do nacionalismo e do liberalismo.

Como podemos superar a fragmentação, a diversidade fragmentada celebrada pelos pós-modernistas, que renunciam a qualquer horizonte de universalidade? Sem negar a relevância da exigência de reconhecimento de diferentes grupos vítimas da injustiça - tema amplamente desenvolvido na obra de Nancy Fraser - o autor rejeita as tentativas de certos "pós-marxistas", como Chantal Mouffe e Ernesto Laclau, de "redefinir" a hegemonia como uma articulação contingente de elementos heterogêneos, sem relação com as classes. A lógica universal do capital afeta as diferentes esferas da vida social e assim cria as condições para uma relativa unificação das resistências, em torno da luta de classes.

Teorema 3 - A dominação imperial não é solúvel nas beatitudes da globalização das mercantil

Não compartilho da aversão de Daniel Bensaïd ao "fetiche de uma Humanidade com H maiúsculo". Mas acho que ele tem razão em denunciar a invocação da legitimidade humanitária para mascarar os interesses do poder imperial.

O imperialismo hoje é um sistema global, econômico, tecnológico, ecológico, cultural e militar. A globalização imperialista afirma ser universalista, mas representa apenas os interesses privados do capital. Os benefícios atribuídos à mão errante do mercado estão longe de compensar os crimes de seu punho visível. Diante da lógica da privatização e da mercantilização do mundo - que inclui a terra, a água, o ar, a própria vida - é urgente opor-se a uma lógica alternativa, a do bem comum e do serviço público. Foi isto que inspirou o "espírito de Seattle", que vem soprando por Millau, Praga, Genebra, Washington, Bangkok, Nice, Dakar e Porto Alegre desde 1999.

Teorema 4 - Quaisquer que sejam as palavras usadas para expressá-lo, o espírito do comunismo é irredutível a suas falsificações burocráticas

Se devemos rejeitar com a máxima energia a tentativa da contra-reforma liberal de dissolver o comunismo no estalinismo, não podemos evitar uma avaliação crítica dos erros que desarmaram os revolucionários de Outubro diante das provações da história, favorecendo a contra-revolução termidoriana: confusão entre o povo, o partido e o Estado, cegueira para o perigo burocrático. Algumas lições históricas devem ser tiradas: a importância da democracia socialista, o pluralismo político, a separação de poderes, a autonomia dos movimentos sociais em relação ao Estado. Quanto ao termo "ditadura" (do proletariado), ele está agora muito carregadp de ambigüidades e associado a experiências históricas demasiado dolorosas para ser usado sem risco de confusão.

Como definir o sistema político estalinista? O conceito de "totalitarismo burocrático" de Trotsky não está tão distante de algumas das análises de Hannah Arendt. E se os marxistas revolucionários, após a Segunda Guerra Mundial, estiverem divididos sobre a questão da natureza da URSS, as teses defendidas por Tony Cliff, Cornelius Castoriadis e Ernest Mandel são, apesar de suas diferenças, baseadas na idéia comum de uma contra-revolução burocrática.

Teorema 5 - A dialética da razão é irredutível ao espelho quebrado da pós-modernidade

Este teorema é o que me causa mais reservas. A defesa de Daniel Bensaïd do racionalismo, da modernidade e do Iluminismo contra o "reencantamento do mundo" me parece um pouco esquemática. E acima de tudo, estou surpreso com suas críticas à Modernidade e Holocausto, o "clássico" do sociólogo Zygmunt Bauman - uma notável demonstração do caráter intrinsecamente "moderno" do genocídio nazista - como resultado de um "distanciamento com a modernidade" e um "retorno à identidade judaica"...

Por outro lado, me parece que ele tem razão em definir modernidade e pós-modernidade como duas faces de Jano, dois pólos magnéticos de acumulação de capital, duas tendências contraditórias inerentes à lógica do valor que busca se valorizar.

Ele não tem menos direito de se opor ao culto pós-moderno da fragmentação, caldos mercantis e saladas de legumes literárias, e de reafirmar, inspirado por Lukács, que a totalidade é irredutível a seus fragmentos dispersos. A rejeição dogmática da totalidade e a tentativa de dividi-la em partes sem coerência geral responde a um medo difuso de qualquer projeto radical de transformação social.

Quanto à universalidade: em sua forma abstrata, é freqüentemente a máscara da dominação - colonial ou masculina. Mas sua crítica não pode evitar a referência, implícita ou explícita, a uma universalidade concreta em sua elaboração.

Ponto de orgulho 

A corrente quente da indignação não é solúvel nas águas mornas da resignação consensual.

Esta conclusão é esplêndida: é levada pelo elogio da indignação e do desprezo ao "homo resignatus", político ou intelectual que é reconhecível de longe por sua impassibilidade batraquiana diante da ordem impiedosa das coisas.

Além da modernidade e da pós-modernidade, ficamos com a força irredutível da indignação, a recusa incondicional da injustiça, que são exatamente o oposto do hábito e da resignação. "A indignação é um começo. Uma maneira de se levantar e ir em frente. Estamos indignados, somos insurgentes, e depois vemos".

É esta força de indignação que corre como um sopro inspirado através desta pequena marca de fogo, cujas qualidades literárias e dom para a fórmula estão a serviço de uma causa que permanece, mais do que nunca, irredutivelmente na agenda: a emancipação dos oprimidos, o comunismo.

A heresia comunista de Daniel Bensaid

Michael Löwy, Blog da Boitempo, 6 de junho de 2011. Traduzido do francês por Leonardo Gonçalves.

(Escrito quando do falecimento de Daniel Bensaïd, em 2010)

“Auguste Blanqui, comunista herético” é o título de um artigo que Daniel Bensaïd e eu redigimos juntos em 2006 (para um livro sobre os socialistas do século XIX na França, organizado por nossos amigos Philipe Corcuff e Alain Maillard) [no Brasil, o artigo foi publicado na revista Margem Esquerda, nº 10]. Esse conceito se aplica perfeitamente a seu próprio pensamento, obstinadamente fiel à causa dos oprimidos, mas alérgico a qualquer ortodoxia.

Daniel havia escrito alguns livros importantes antes de 1989, mas a partir daquele ano, com a publicação de Moi la Révolution : Remembrances d’un bicentenaire indigne [Eu, a revolução: Remembranças de um bicentenário indigno] (Gallimard, 1989) e Walter Benjamin, sentinelle messianique [Walter Benjamin, sentinela messiânico] (Plon, 1990), começa um novo período, que se caracteriza não apenas por uma enorme produtividade – dezenas de obras, dentre as quais várias consagradas a Marx – mas também por uma nova qualidade de escrita, uma fantástica efervescência de ideias, uma surpreendente inventividade. Apesar de sua grande diversidade, esses escritos não deixam de ser tecidos com fios vermelhos comuns: a memória das lutas – e suas derrotas – do passado, o interesse pelas novas formas de anticapitalismo e a preocupação com os novos problemas que se colocam à estratégia revolucionária. Sua reflexão teórica era inseparável de sua militância, quer ele escreva sobre Joana D’arc – Jeanne de guerre lasse [Joana D’arc de guerra cansada] (Gallimard, 1991) – ou sobre a fundação do NPA (Prendre parti [Tomar partido], com Olvier Besancenot, 2009). Seus escritos têm, consequentemente, uma forte carga pessoal emocional, ética e política, que lhes dá uma qualidade humana pouco comum. A multiplicidade de suas referências pode tomar desvios: Marx, Lenin e Trotsky, com certeza, mas também Auguste Blanqui, Charles Péguy, Hannah Arendt, Walter Benjamin, sem esquecer Blaise Pascal, Chateaubriand, Kant, Nietzsche e muitos outros. Apesar de toda essa surpreendente variedade, aparentemente eclética, seu discurso não deixa de ter uma notável coerência.

“Eu leio seus livros sem parar como remédios contra a burrice e o egoísmo”, escreveu recentemente seu amigo, o poeta Serge Pey. Se os livros de Daniel são lidos com tanto prazer, é porque eles foram escritos com a pena afiada de um verdadeiro escritor, que tem o dom da fórmula: uma fórmula que pode ser assassina, irônica, nervosa ou poética, mas que vai sempre direto ao ponto. Esse estilo literário, próprio ao autor e inimitável, não é gratuito, mas vem a serviço de uma ideia, de uma mensagem, de um apelo: não se dobrar, não se resignar, não se reconciliar com os vencedores.

Esta ideia se chama comunismo. Ela não poderia ser identificada com os crimes burocráticos cometidos em seu nome, assim como o cristianismo não pode ser reduzido à Inquisição e às dragonnades [espécie de polícia religiosa criada durante o reinado de Luis XIV para perseguir protestantes e reconvertê-los ao catolicismo]. O comunismo, em última análise, é apenas a esperança de suprimir a ordem existente, o nome secreto da resistência e da sublevação, a expressão da grande cólera negra e vermelha dos oprimidos. É o sorriso dos explorados que esperam ao longe os tiros de fuzil dos insurgentes em junho de 1848 – episódio contado com inquietude por Alexis de Tocqueville e reinterpretado por Toni Negri. Seu espírito sobreviverá ao triunfo atual da mundialização capitalista, tal como o espírito do judaísmo durante a destruição do Templo e a expulsão da Espanha (gosto dessa comparação insólita e um pouco provocadora).

O comunismo não é o resultado do “Progresso” ou das leis da História (com P e H maiúsculos): trata-se de uma eterna luta, incerta e anunciada. A política, que é a arte estratégica do conflito, da conjuntura e do contratempo, implica numa responsabilidade humanamente falível, e deve ser confrontada com as incertezas de uma história aberta.

O comunismo do século XXI era, para Daniel, o herdeiro das lutas do passado, da Comuna de Paris, da Revolução de Outubro, das ideias de Marx e Lênin, e dos grandes vencidos que foram Trotsky, Rosa Luxemburgo, Che Guevara. Mas também algo de novo, a altura das questões do presente: um eco-comunismo (termo que ele inventou), integrando centralmente o combate ecológico contra o capital.

Para Daniel, o espírito do comunismo não podia ser reduzido às suas falsificações burocráticas. Se ele era, com suas últimas energias, contra a tentativa da Contra-Reforma liberal de dissolver o comunismo no stalinismo, ele não reconhecia tampouco que pode-se fazer a economia de um balanço crítico dos erros que desarmaram os revolucionários de Outubro em face das provas da história, favorecendo a contrarrevolução termidoriana: confusão entre povo, partido e Estado, cega em relação ao perigo burocrático. É preciso retirar disto certas lições históricas já esboçadas por Rosa Luxemburgo em 1918: a importância da democracia socialista, do pluralismo político, da separação dos poderes, da autonomia dos movimentos sociais sem relação ao Estado.

A fidelidade ao espectro do comunismo não impede que Daniel advogue em favor de uma renovação profunda do pensamento marxista, especialmente sobre dois terrenos onde a tradição falha em particular: o feminismo e a ecologia. As feministas – como Christine Delphy – por criticar a abordagem de Engels, que definia a opressão doméstica como um arcaísmo pré-capitalista que em breve se apagaria com a assalariação das mulheres. No movimento operário, ele forneceu muitas vezes um sexismo grosseiro, principalmente ao retomar a seu favor a noção burguesa de salário mínimo. A necessária aliança entre a consciência de gênero e a consciência de classe não pode ser feita sem um retorno crítico dos marxistas sobre sua teoria e sua prática.

O mesmo vale para a questão do meio ambiente: habitualmente ligado ao compromisso fordista e à lógica produtiva do capitalismo, o movimento operário era indiferente ou hostil para com a ecologia. Por seu lado, os partidos Verdes têm a tendência de se contentar com uma ecologia de mercado e com um reformismo social-liberal. Ora, o antiprodutivismo de nosso tempo deve necessariamente ser um anticapitalismo: o paradigma ecológico é inseparável do paradigma social. Diante dos danos catastróficos provocados no meio ambiente pela lógica do valor de mercado, é preciso propor a necessidade de uma mudança radical do modelo de consumo, de civilização e de vida.

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 A filosofia de Daniel Bensaïd não era um exercício acadêmico, mas estava atravessada, de um lado a outro, pelo fogo da indignação, um fogo que, segundo ele, não pode ser apagado nos mornos da resignação consensual. Daí o seu desprezo pelo “homo resignatus”, político ou intelectual que é reconhecido à distância por sua impassibilidade batraquiana perante a ordem impiedosa das coisas. Para além da modernidade e da pós-modernidade, nos resta, dizia Daniel, a força irredutível da indignação, a incondicional recusa da injustiça, que são o contrário exato do costume e da resignação. “A indignação é um começo. Uma maneira de se erguer e de se colocar em movimento. Primeiro a gente se indigna, se insurge e depois vê”.

Seu hino poético-filosófico à glória da resistência – esta “paixão messiânica de um mundo justo que não aceita sacrificar o “cintilar do possível diante da terna fatalidade do real” – se inspira ao mesmo tempo na paciência do marrano e na impaciência messiânica de Franz Rosenzweig e Walter Benjamin. É também inspirado na profecia do Antigo Testamento, que não se propõe predizer, como a adivinhação antiga o futuro, mas, ao contrário, soar o alerta da catástrofe possível. O profeta bíblico, como já o havia sugerido Max Weber em seu trabalho sobre o judaísmo antigo, não procede com ritos mágicos, mas convida a agir. Contrariamente ao esperar e ver apocalíptico e aos oráculos de um destino inexorável, a profecia é uma antecipação condicional, significada pelo oulai (“se”) hebraico. Ela busca desviar a trajetória catastrófica, conjurar o pior, manter aberto o feixe dos possíveis, logo ela é um apelo estratégico à ação. Segundo Daniel, há profecia em toda grande aventura humana, amorosa, estética ou revolucionária.

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Entre todas as “heresias” de Daniel Bensaïd, quer dizer, suas contribuições para a renovação do marxismo, a mais importante, a meus olhos, é a sua ruptura radical com o cientificismo, o positivismo e o determinismo que se impregnaram tão profundamente no marxismo “ortodoxo”, principalmente na França.

Um de seus últimos escritos foi uma longa introdução aos escritos de Marx sobre a Comuna – uma brilhante e enérgica defesa e ilustração do político enquanto pensamento estratégico revolucionário. A doutrina oficial pretende que não há pensamento político em Marx, já que a sua teoria se resume ao determinismo econômico. Ora, a leitura de seus escritos políticos, principalmente a sequência Lutas de classe na França, O 18 de brumário de Luís Bonaparte e A guerra civil na França (os dois últimos publicado no Brasil pela Boitempo em 2011) mostra, muito pelo contrário, uma leitura estratégica dos acontecimentos, levando em consideração a temporalidade própria do político, os antípodas do tempo mecânico do relógio e do calendário. O tempo não-linear e sincopado das revoluções no qual se cavalgam as tarefas do passado, do presente e do futuro é sempre aberto à contingência. A interpretação de Marx por DB é, certamente, influenciada por Walter Benjamin e pelas polêmicas antipositivistas de Blanqui, dois pensadores revolucionários aos quais ele rende uma homenagem apoiada.

Auguste Blanqui é uma referência importante nesta abordagem crítica. No artigo de 2006, mencionado mais acima, ele lembra a polêmica de Blanqui contra o positivismo, esse pensamento de progresso em boa ordem, de progresso sem revolução, esta “doutrina execrável do fatalismo histórico” erigida na religião. Contra a ditadura do fato consumado, acrescentava Bensaïd, Blanqui proclamava que o capítulo das bifurcações ficava aberto à esperança. Contra “a mania do progresso e do desenvolvimento contínuo”, a irrupção eventual do possível no real se chamava revolução. A política que prevalece sobre a história. E propunha as condições de uma temporalidade estratégica e não mais mecânica, “homogênea e vazia”. Logo, para Blanqui, “a engrenagem das coisas humanas não é fatal como a do universo, ela é modificável em cada minuto”. Daniel Bensaïd comparava esta fórmula com ade Walter Benjamin: cada segundo é a porta estreita por onde pode surgir o Messias, quer dizer, a revolução, esta irrupção eventual do possível no real.

Sua releitura de Marx, à luz de Blanqui, de Walter Benjamine de Charles Péguy, o conduz a conceber a história como uma série de ramificações e bifurcações, um campo de possíveis onde a luta de classes ocupa um lugar decisivo, mas cujo resultado é “imprevisível”. Em Le pari mélancolique [A aposta melancólica] (Fayard, 1997), talvez seu mais belo livro, o mais “inspirado”, ele retoma uma fórmula de Pascal para afirmar que a ação emancipadora é “um trabalho para o incerto”, implicando numa aposta no futuro: uma esperança que não é demonstrável cientificamente, mas sobre a qual envolve-se a existência por inteiro. Redescobrindo a interpretação marxista de Pascal de Lucien Goldmann, ele define o envolvimento político como uma aposta pensada sobre o devir histórico, “com o risco de perder tudo ou de se perder”. A aposta é inelutável, num sentido ou no outro: como escrevia Pascal, “embarcamos”. Na religião do deus oculto (Pascal) como na política revolucionária (Marx), a obrigação da aposta define a condição trágica do homem moderno.

A revolução deixa, portanto, de ser o produto necessário das leis da história, ou das contradições econômicas do capital para se transformar numa hipótese estratégica, um horizonte ético, “sem o qual a vontade renuncia, o espírito da resistência capitula, a fidelidade falha, a tradição se perde”. A ideia de revolução se opõe à sequência mecânica de uma temporalidade implacável. Refratária à conduta causal dos fatos ordinários, ela é interrupção. Momento mágico, a revolução leva ao enigma da emancipação em ruptura com o tempo linear do progresso, esta ideologia da caixa de poupança tão violentamente denunciada por Péguy, onde a cada minuto, a cada hora que passa supõe-se trazer algum crescimento à sua pequena poupança através de aumentos nos juros.

Em consequência, como ele explica em Fragments mécréants [Fragmentos canalhas] (Lignes, 2005), o homem revolucionário é o da dúvida em oposição ao homem de fé, um indivíduo que aposta nas incertezas do século, e que põe uma energia absoluta a serviço de certezas relativas. Logo, alguém que tenta, incansavelmente, praticar esse imperativo exigido por Walter Benjamin em seu último escrito, as Teses Sobre o conceito de história (1940): escovar a história a contrapelo.

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Daniel fará falta. Já o faz, cruelmente. Mas pensamos que ele gostaria que nos lembrássemos da famosa mensagem de Joe Hill, o I.W.W., o poeta e músico do sindicalismo revolucionário norte-americano, a seus camaradas, às vésperas de ser fuzilado pelas autoridades (sob falsas acusações) em 1915: “Don’t mourn, organize!”. Não lamentem, organizem (a luta)!

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Daniel Bensaïd (1946-2010), filósofo e dirigente da Liga Comunista Revolucionária, foi um dos militantes mais destacados dos movimentos de Maio de 1968. Foi professor de Filosofia da Universidade de Paris VIII. Autor de muitas obras, tem, entre as publicadas em português, Os irredutíveis (Boitempo, 2008), Marx, o intempestivo (1999) e, em co-autoria com Michael Löwy, Marxismo, modernidade e utopia (2000).

Michael Löwy se formou em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), é autor de Walter Benjamin: aviso de incêndio (Boitempo, 2005) e Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade (Boitempo, 2009) e organizador de Revoluções (2009), dentre outras publicações. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente.