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Mike Davis e o Covid-19 nos EUA: o monstro está à nossa porta

12 de março de 2020

I. A COVID -19 é finalmente o monstro à porta. Os pesquisadores estão trabalhando noite e dia para caracterizar o surto, mas enfrentam três enormes desafios. Primeiro, a contínua escassez ou indisponibilidade de kits de teste venceu toda a esperança de contenção. Além disso, está impedindo estimativas precisas de parâmetros-chave, tais como taxa de reprodução, tamanho da população infectada e número de infecções benignas. O resultado é um caos de números.

Tal como as influenzas anuais, este vírus está em mutação à medida que circula entre populações com diferentes composições etárias e imunidades adquiridas. A variedade que os americanos têm maior probabilidade de obter já é ligeiramente diferente da do surto original em Wuhan. Mutações adicionais podem ser triviais ou podem alterar a distribuição atual da virulência que ascende com a idade, com bebês e crianças pequenas mostrando pouco risco de infecção grave enquanto octogenários enfrentam o perigo mortal da pneumonia viral.

Mesmo que o vírus permaneça estável e pouco mutado, o seu impacto sobre os grupos com menos de 65 anos pode ser radicalmente diferente nos países pobres e entre os grupos de alta pobreza. Considere a experiência global da gripe espanhola em 1918-19, que se estima ter matado 1 a 2% da humanidade. Em contraste com o coronavírus, foi mais mortal para os adultos jovens e isto tem sido frequentemente explicado como resultado do seu sistema imunitário relativamente mais forte, que reagiu exageradamente à infecção ao desencadear “tempestades de citocinas” mortais contra as células pulmonares. O H1N1 original encontrou um nicho notoriamente favorável nos campos do exército e nas trincheiras do campo de batalha, onde derrubou os jovens soldados às dezenas de milhares. O colapso da grande ofensiva alemã da Primavera de 1918 e, portanto, o resultado da guerra, foi atribuído ao fato de os Aliados, em contraste com os seus inimigos, poderem reabastecer os seus exércitos doentes com tropas americanas recém-chegadas.

No entanto, raramente se sabe que 60% da mortalidade global ocorreu na Índia ocidental, onde as exportações de cereais para a Grã-Bretanha e as práticas brutais de requisição coincidiram com uma grande seca. A resultante escassez de alimentos levou milhões de pessoas pobres à beira da fome. Eles tornaram-se vítimas de uma sinistra sinergia entre a desnutrição, que suprimiu sua resposta imunológica à infecção, e uma pneumonia bacteriana e viral desenfreada. Em outro caso, no Irã ocupado pelos ingleses, vários anos de seca, cólera e escassez de alimentos, seguido de um surto de malária generalizada, determinação a morte de, estima-se, um quinto da população.

Esta história – especialmente as consequências desconhecidas das interações com a desnutrição e as infecções existentes – deve advertir-nos que a COVID-19 pode tomar um caminho diferente e mais mortal nas favelas da África e do Sul da Ásia. O perigo para os pobres globais tem sido quase totalmente ignorado por jornalistas e governos ocidentais. O único artigo publicado que vi afirma que, como a população urbana da África Ocidental é a mais jovem do mundo, a pandemia deveria ter apenas um impacto moderado. À luz da experiência de 1918, esta é uma extrapolação insensata. Ninguém sabe o que vai acontecer nas próximas semanas em Lagos, Nairóbi, Karachi ou Calcutá. A única certeza é que os países ricos e as classes ricas se concentrarão em salvar a si mesmos, excluindo a solidariedade internacional e a ajuda médica. Muros não vacinas: poderia haver um modelo mais maléfico para o futuro?

II - Daqui a um ano podemos olhar para trás com admiração para o sucesso da China em conter a pandemia, mas com horror ao fracasso dos EUA. (Estou fazendo a heróica suposição de que a declaração da China de rápida diminuição da transmissão é mais ou menos precisa). A incapacidade das nossas instituições de manter a Caixa de Pandora fechada, é claro, não é uma surpresa. Desde 2000, temos assistido repetidamente a rupturas na linha de frente dos cuidados de saúde.

A temporada de gripe de 2018, por exemplo, sobrecarregou os hospitais em todo o país, expondo a chocante escassez de leitos hospitalares após vinte anos de cortes na capacidade de internação com fins lucrativos (a versão do setor de gestão de estoques just-in-time). O fechamento de hospitais privados e de caridade e a escassez de enfermeiros, também impostos pela lógica do mercado, devastaram os serviços de saúde nas comunidades e áreas rurais mais pobres, transferindo o fardo para hospitais públicos e instalações de veteranos subfinanciados. As instalações de emergência em tais instituições já não conseguem lidar com infecções sazonais; como irão, então, lidar com uma sobrecarga iminente de casos críticos?

Estamos nos estágios iniciais de um Katrina médico. Apesar de anos de avisos sobre a gripe aviária e outras pandemias, os inventários de equipamentos básicos de emergências, como respiradores, mostram que eles não são suficientes para lidar com a inundação esperada de casos críticos. Os combativos sindicatos de enfermeiras da Califórnia e doutros estados estão certificando-se de que todos nós compreendamos os graves perigos criados por reservas inadequadas de material de proteção essencial, como as máscaras N95. Ainda mais vulneráveis porque invisíveis são as centenas de milhares de trabalhadores domésticos e pessoal de enfermagem com baixos salários e excesso de trabalho.

Os lares de idosos e a indústria de assistência que “armazena” 2,5 milhões de idosos norte-americanos – a maioria deles na Medicare –, há muito tempo é um escândalo nacional. De acordo com o New York Times, 380 mil pacientes domiciliares de enfermagem morrem todos os anos devido à negligência dos procedimentos básicos de controle de infecções nas instalações. Muitos lares – particularmente nos estados do Sul – acham mais barato pagar multas por violações sanitárias do que contratar pessoal adicional e dar-lhes formação adequada. Agora, como alerta o exemplo de Seattle, dezenas, talvez centenas de outros lares se tornarão pontos quentes do coronavírus e seus funcionários com salário mínimo optarão racionalmente por proteger suas próprias famílias, ficando em casa. Nesse caso, o sistema pode entrar em colapso e não devemos esperar que a Guarda Nacional esvazie as macas.

O surto expôs instantaneamente a forte divisão de classes na área da saúde: aqueles com bons planos de saúde que também podem trabalhar ou ensinar a partir de casa estão confortavelmente isolados desde que sigam salvaguardas prudentes. Os funcionários públicos e outros grupos de trabalhadores sindicalizados com cobertura decente terão de fazer escolhas difíceis entre renda e proteção. Enquanto isso, milhões de trabalhadores de serviços de baixo salário, trabalhadores rurais, trabalhadores precários descobertos, desempregados e sem-teto serão jogados para os lobos. Mesmo que o Washington acabe por resolver o fiasco dos testes e forneça um número adequado de kits, os não segurados ainda terão de pagar a médicos ou hospitais para administrar os testes. Em geral, as contas médicas da família subirão ao mesmo tempo em que milhões de trabalhadores estão perdendo seus empregos e o seguro médico fornecido pelo empregador. Poderia haver um caso mais forte e mais urgente a favor do Medicare for All?

III - Mas a cobertura universal é apenas um primeiro passo. É decepcionante, para dizer o mínimo, que nos debates das primárias nem Sanders nem Warren tenham destacado a abdicação da Big Pharma de pesquisar e desenvolver novos antibióticos e antivirais. Das 18 maiores empresas farmacêuticas, 15 abandonaram totalmente o campo. Medicamentos para o coração, tranquilizantes viciantes e tratamentos para a impotência masculina são líderes do lucro, não as defesas contra infecções hospitalares, doenças emergentes e assassinos tropicais tradicionais. Uma vacina universal contra a gripe – ou seja, uma vacina que visa as partes imutáveis das proteínas de superfície do vírus da influenza – tem sido uma possibilidade há décadas, mas nunca uma prioridade lucrativa.

À medida que a revolução antibiótica for recuando, doenças antigas reaparecerão ao lado de novas infecções e os hospitais se tornarão sepulturas. Mesmo Trump pode denunciar, oportunisticamente, custos absurdos de prescrição, mas precisamos de uma visão mais ousada que conceba quebrar os monopólios da indústria farmacêutica e prover a produção pública de remédios para toda a vida. (Este costumava ser o caso: durante a Segunda Guerra Mundial, o Exército alistou Jonas Salk e outros pesquisadores para desenvolver a primeira vacina contra a gripe). Como escrevi há quinze anos no meu livro O monstro bate a nossa porta: a ameaça global da gripe aviária:

O acesso a medicamentos vitais, incluindo vacinas, antibióticos e antivirais, deve ser um direito humano, universalmente disponível sem custos. Se os mercados não podem oferecer incentivos para produzir tais medicamentos a baixo custo, então governos e organizações sem fins lucrativos devem assumir a responsabilidade pela sua fabricação e distribuição. A sobrevivência dos pobres deve ser sempre considerada uma prioridade maior do que os lucros das grandes farmacêuticas (Big Pharma).

A atual pandemia expande o argumento: a globalização capitalista parece agora ser biologicamente insustentável na ausência de uma verdadeira infraestrutura de saúde pública internacional. Mas tal infraestrutura nunca existirá enquanto os movimentos populares não quebrarem o poder das grandes farmacêuticas e dos cuidados de saúde com fins lucrativos.

Mike Davis é autor de inúmeras obras sobre sociologia e urbanismo. Docente no departamento de Escrita Criativa da Universidade da Califórnia em Riverside, integra o conselho da New Left Revew. Entre seus livros traduzidos para o português estão: Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles (São Paulo: Boitempo, 2009, 2ª ed.), Planeta favela (São Paulo: Boitempo, 2006), Holocaustos coloniais: clima, fome e imperialismo na formação do Terceiro Mundo (Rio de Janeiro: Record, 2002) e O monstro bate à nossa porta: a ameaça global da gripe aviária (Rio de Janeiro: Record, 2006).