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Morre um facínora

Enquanto esteve nas fileiras da burocracia estalinista, a contribuição de Gorbachev ao debate sobre a necessidade de romper com o chamado "desenvolvimentismo de esquerda" se deu com a tragédia de Chernobil.

4 de setembro de 2022

Por Luciana Araújo e Henrique Lemos

A mídia brasileira passou os dias 30 e 31/8 repetindo a pergunta se Mikhail Gorbachev teria sido herói ou vilão. Às novas gerações, precisamos dizer: Não temos dúvida, morreu um facínora.

Enquanto esteve nas fileiras da burocracia estalinista, a contribuição de Gorbachev ao debate sobre a necessidade de romper com o chamado "desenvolvimentismo de esquerda" se deu com a tragédia de Chernobil.

A capitulação do regime ao sociometabolismo do capital mostrou sua face mais cruel na morte de milhares de cidadãos e na devastação de cem mil Km2 cujas estimativas são de permanência da contaminação por 20 mil anos.

O desastre foi negado até limite pela burocracia. Aos moldes dos negacionistas atuais. Só sendo divulgado após diversas evidências coletadas por cientistas de países vizinhos. E isso na época em que o governo anunciava a Glasnost, como forma de tornar transparente o regime.

E Gorbachev tornou-se o ecocida que se tornou pelo motivo que a mídia considera que seja tolerável chamá-lo de herói: foi o dirigente que completou de forma decisiva a restauração capitalista na antiga União Soviética, com sua Perestroika sustentada por acordos com o imperialismo estadunidense. Foi o homem decisivo para recolocar 1/3 da humanidade sob o jugo do capital.

Como destacou Mandel, a reforma do burocrático regime soviético pós 24 estava fadada a fracassar porque seguia prescindindo da classe trabalhadora russa e se destinava efetivamente à manutenção do curso restauracionista intensificado a partir de Khruschov.

"A orientação de Gorbachev a uma reforma radical do sistema não foi, em primeiro lugar, o resultado de nenhuma escolha ideológica. Foi o resultado de condições objetivas inevitáveis, da crise cada vez mais profunda do sistema no qual estava afundada a [então] URSS desde o final dos anos 1970", observou brilhantemente Mandel no artigo 'A inevitável queda de Gorbachev', de fevereiro de 1992.

O último governante da URSS, como também destacou Mandel, ainda que usasse de forma vaga a autodenominação socialista, mostrava a que interesses servia em sua política concreta, que de positiva teve a recuperação parcial de liberdades democráticas exterminadas sob Stálin na sequência dos assassinatos de quase todos os dirigentes da Revolução de Outubro de 1917.

Mas, passados mais de 30 anos, até o aspecto positivo "reforma" é passível de relativização. É possível avaliar que mesmo a autorização para reorganização das oposições ao regime foi parte da política restauracionista. Fez do eco à crítica difusa e de direita à linha dura da burocracia o colchão para o avanço do colapso da URSS, articulado como "respostas" a demandas populares após a publicização dos crimes do estalinismo por Khruschov.

A disputa palaciana interna corporis à Nomenklatura foi outro móvel da derrotada Perestroika de Gorbachev.

Ironicamente, sua morte se dá 30 anos após o preditivo artigo de Mandel, às vésperas dos 31 aniversários da dissolução oficial da URSS. E já contados seis meses da guerra deflagrada pela Rússia contra a Ucrânia (o resultado catastrófico da disputa imperialista pela reorganização geopolítica mundial no pós-pandemia).

Como se diz por aí, foi tarde!

*Luciana Araujo é jornalista e militante feminista e antirracista e da Insurgência/PSOL

Henrique Lemos é advogado, professor da UFG e militante da Insurgência/PSOL