Considerações sobre a ascensão das extremas-direitas
Daniel Aarão Reis, A terra é redonda, 9 de março de 2021
A democracia face à extrema-direita. Desafios & Alternativas
A análise do bolsonarismo tornou-se mais complexa em virtude de acontecimentos que se têm desdobrado a partir de junho de 2020.
Até então o governo manteve uma retórica beligerante, apoiando grupos extremistas que se destacavam por uma retórica de enfrentamento e que demandavam abertamente, às vezes com a presença e o estímulo do próprio presidente, o fechamento das instituições da democracia representativa, ou seja, um golpe de estado na tradição latino-americana dos anos 1960/1970.
Com o crescimento das tensões, associadas à crise gerada pela pandemia do vírus covid-19, extremamente mal gerenciada por Bolsonaro, à demissão do ministro da Justiça em abril de 2020, e a vários escândalos de corrupção, envolvendo fiéis aliados e até os próprios filhos de Bolsonaro, o governo sofreu profundo desgaste. Tendo sido sufragado por 57,8 milhões de votos (55,13% dos votos válidos), os índices de confiança caíram bastante, conforme flagrado por pesquisas realizadas em maio e junho de 2020, situando-se em torno de 30%[xxxvii].
Houve, a partir de então, notável e surpreendente reviravolta.
Bolsonaro abandonou à própria sorte os grupos extremistas que se isolaram e enfrentam hoje complicados processos na Justiça. Suspendeu igualmente a habitual retórica estridente, com aspectos paranoicos, e se dedicou, com sucesso, a formar ampla base política com diversos partidos minados por múltiplas acusações de envolvimento com a corrupção. No mesmo movimento, definiu um padrão de relações estáveis e amigáveis com lideranças do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, até então quotidianamente hostilizadas[xxxviii].
Bafejado pelo impacto positivo do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso, mas que tem sido atribuído ao presidente pelos beneficiários, e apesar do desgaste entre os que votaram nele pensando na luta contra a corrupção, Bolsonaro voltou a conhecer substancial crescimento nos índices de aprovação popular segundo pesquisas realizadas em setembro último[xxxix].
As opiniões e análises se dividem agora a propósito dos rumos do bolsonarismo e do governo de Jair Bolsonaro. Estaríamos assistindo a um recuo episódico, “tático”, ou se trataria de definição de novos rumos? O presidente estaria receoso de que os processos contra seus filhos pudessem alcançar um ponto de não-retorno? Atingindo-o através de um processo de impeachment, de duvidosos resultados? O que teria feito Bolsonaro desistir das bravatas e ameaças sem fim? Os altos mandos das Forças Armadas teriam desaconselhado aventuras militaristas e ditatoriais? O presidente teria concluído que, entre as próprias classes dominantes, não haveria espaço, pelo menos nas circunstâncias atuais, para surtos autoritários? Teria sido ele, afinal, domesticado no quadro dos parâmetros institucionais? Outra incógnita, maior, completa o quadro de dúvidas: as orientações ortodoxamente neoliberais, lideradas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, seriam mantidas a todo o custo ou prevaleceriam inclinações por políticas nacional-estatistas, conferindo ao Estado um protagonismo decisivo na recuperação da economia?
O futuro do governo permanece indeciso. A cruzada contra a corrupção, depois da demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro, em abril passado, deixou de ser uma prioridade, para dizer o menos. A proposta neoliberal de reorganização da economia encontra-se também em questão. O ministro da Economia, Paulo Guedes, paladino desta perspectiva, apesar de seus esforços, não conseguiu ainda esvaziar as tendências nacional-estatistas defendidas por vários ministros[xl]. Grande parte da mídia, partidária das medidas e políticas neoliberais, hesita em acreditar na solidez da posição do ministro da Economia e não está certa de que ele se sairá vencedor nos embates contra os nacional-estatistas incrustados no governo.
As campanhas com vistas às eleições municipais, considerando-se a excepcionalidade da pandemia, vêm transcorrendo normalmente, promovendo-se uma carta “naturalização” do governo Bolsonaro. Quanto aos erros clamorosos cometidos pelo presidente ao lidar com a pandemia, o cansaço que toma conta de amplos setores da população, devido aos rigores da pandemia, tende a neutralizar, ao menos em parte, o desgaste sofrido nos primeiros meses pelos propósitos negacionistas do presidente.
Neste quadro, as forças de esquerda, de forma geral, permanecem sem propostas claras e sem capacidade de intervenção e mobilização. As referências a um possível impeachment, por improvável, esfumaram-se. É como se no palco político, em vez de duas forças, estivessem se confrontando duas fraquezas. A extrema-direita não tem capacidade – ainda não – de derrotar o Congresso e o Judiciário ou ameaçar, pelo menos no curto prazo, as instituições democráticas. Mas estas instituições também não conseguem remover Bolsonaro.
Como entrever e propor alternativas?
Entre os que observam a cena política brasileira, há um consenso de que a maioria de votos obtidos por Bolsonaro nas eleições de outubro de 2018 deveu-se muito mais ao antipetismo do que propriamente ao entusiasmo suscitado pelas propostas e características do candidato vitorioso.
Votando ou se articulando em torno de Bolsonaro, muitos ficaram na expectativa que, depois da vitória, houvesse uma rápida domesticação do presidente. Uma expectativa não realizada, mesmo depois da reviravolta acima mencionada. Se é verdade que as provocações e bravatas diminuíram de intensidade, são poucos os que imaginam que ele teria abandonado propostas e perspectivas autoritárias. Em vez de um golpe frontal, não se pode descartar, dependendo das circunstâncias, a hipótese de uma estratégia de desgaste progressivo das margens democráticas, uma corrosão por dentro as instituições, mantendo-as, no limite, como se fossem cascas desprovidas de conteúdo, num estilo semelhante ao empreendido por V. Orbán na Hungria[xli].
O fato é que, uma vez ameaçadas, as forças políticas de centro e de direita democráticas, hegemônicas no Parlamento e no Poder Judiciário, reagiram, marcando limites às pretensões ditatoriais de Bolsonaro. As tendências e os métodos chavistas, de enfraquecimento progressivo das instituições democráticas, atribuídos pelas direitas ao PT e a Lula, estariam sendo, na prática, adotados por Bolsonaro[xlii]. Em protesto, manifestos de intelectuais, juristas e profissionais liberais, publicados pela imprensa, afirmavam-se na defesa das instituições democráticas. Panelaços contra Bolsonaro, em várias cidades, evidenciavam um crescimento da insatisfação.
Reitera-se o equilíbrio de forças: entre a extrema-direita, liderada por Bolsonaro e a direita/centro democráticos, representados por líderes parlamentares e ministros do Supremo Tribunal federal. Nenhum lado mostra-se capaz de derrotar o outro.
A ameaça à democracia representada pela extrema-direita continua real. É verdade que o presidente perdeu bases nas classes médias que votaram nele imaginando-o como um campeão na luta contra a corrupção. Entretanto, o avanço registrado em amplos setores sociais em virtude o auxílio emergencial concedido pode inspirar aventuras autoritárias com apoio popular, o que não seria inédito na história do Brasil[xliii].
Se o governo mantiver a orientação neoliberal, prometida durante a campanha eleitoral, será muito difícil ampliar ou manter substancial apoio popular. Já uma inflexão no sentido de uma política nacional-estatista, combinando-se com políticas assistencialistas, criariam condições mais favoráveis ao apoio de camadas populares[xliv].
O dado novo é que as esquerdas democráticas começam a sair do torpor que as caracterizou desde a derrota eleitoral de 2018. Entre elas cabe distinguir as ações empreendidas pelas esquerdas de Estado e pelas esquerdas sociais.
A conceituação tem sido defendida por Carlos Vainer, professor vinculado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional/IPPUR/UFRJ). As esquerdas de Estado seriam representadas pelos partidos políticos ou outras associações que disputam espaços institucionais, e ritmam seus movimentos de acordo com os calendários eleitorais. Já as esquerdas sociais seriam constituídas por lideranças que operam no tecido social, articulando e organizando movimentos que se desdobram na base da sociedade.
A experiência dos governos petistas evidenciou que não há uma “muralha da China” entre estes dois tipos de esquerda: muitos representantes de movimentos sociais importantes foram aspirados por órgãos ou conselhos consultivos, abandonando ou deixando em plano secundário a militância social. Até mesmo um movimento social tradicional, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra/MST, deixou-se cooptar, em certa medida pelos acenos e promessas dos governos petistas.
Estas esquerdas, sempre plurais, não estão destinadas a permanecer desarticuladas e/ou apartadas. No Brasil atual, porém, no quadro da nova república, estabeleceu-se uma grande distância entre elas, na medida em que as primeiras – as esquerdas de Estado – têm sido aspiradas pelas alturas institucionais das lutas políticas, afastando-se claramente das dinâmicas, aspirações e movimentos que se desdobram nas bases da sociedade, onde atuam as esquerdas sociais[xlv].
As esquerdas de Estado não parecem sensíveis a um processo autocrítico. Continuam ruminando críticas e ressentimentos relativos ao passado de derrotas recentes. No seu conjunto, nas eleições municipais de novembro de 2020, perderam uma boa chance de aparecerem unidas, com uma proposta alternativa ao autoritarismo bolsonarista, politizando as escolhas locais. Ao contrário, dividiram-se e foram a reboque da dinâmica localista dos pleitos municipais.
Contribuíram assim, involuntariamente, para “naturalizar” o bolsonarismo e a desarmar a sociedade para eventuais surtos autoritários. De seu lado, o Presidente, salvo exceções, fez uma escolha de se manter “neutro” em relação a candidaturas às prefeituras das cidades brasileiras. Entretanto, nas cidades onde manifestou apoio, seus candidatos não aparecem como favoritos, evidenciando-se que a “onda bolsonarista” de 2018 encontra dificuldades em se repetir. Reproduz-se, na conjuntura eleitoral, o “empate” de fraquezas acima referido.
Quanto às esquerdas sociais, evidenciam maior dinâmica. Em várias cidades, tomam iniciativas para se defender dos efeitos da pandemia, organizando serviços próprios de saúde, desempenhando papéis que caberiam ao Estado, mas que não são por este assumidos por negligência ou incompetência. Nas ruas, apesar dos interditos impostos pela pandemia, promoveram manifestações, disputando os espaços públicos com os grupos de extrema-direita. Nas mídias sociais, fervilham ações de diferentes tipos– debates, palestras, lives. Intelectuais e artistas formulam plataformas comuns, assinam manifestos e se pronunciam em defesa da democracia[xlvi]. É bastante provável que, desaparecidos ou atenuados os efeitos da pandemia, brotem importantes movimentos sociais, dando vazão a demandas por melhores condições vida, serviços públicos decentes, renda básica para todos, diminuição das desigualdades sociais etc.
Trata-se de garantir as margens democráticas existentes, reunindo em torno delas, sem exclusões, todos os que estiverem dispostos a lutar por sua preservação. A ideia de concretizar este movimento em torno de uma plataforma antifascista pode ser problemática. Para além da já referida inconsistência teórica, é de se perguntar se as amplas maiorias saberão sequer o que significa o termo fascismo. Por outro lado, e mais importante, uma frente popular democrática deveria se evidenciar como alternativa – positiva e construtiva – e não apenas se formar na base do anti, eis que tais frentes – negativas – tendem a perder o essencial: de que democracia se está falando, que democracia é preciso construir[xlvii].
Entretanto, é preciso ir além de defender apenas as margens democráticas existentes – restritas e limitadas. Neste sentido, cabe às esquerdas democráticas – de Estado e sociais – se reinventarem e se reaproximarem: a prioridade é investir na ativação dos movimentos de rua, recuperando musculatura no tecido social, reconstruindo forças de que já dispuseram, mas as perderam, e sem as quais não conseguirão retornar ao proscênio, hoje ocupado pela extrema-direita e pelas direitas e centro democráticos.
Num plano mais geral, as esquerdas democráticas precisam formular um programa de democratização da democracia, uma condição indispensável para que as gentes tornem a se interessar – e a proteger, no limite, a se dispor a salvar – o regime democrático ameaçado.
Um conjunto complexo de desafios. Que sejam capazes de suscitar, como sugeriu S. Zizek, a coragem da desesperança[xlviii]. Deste tipo de coragem é que dependerá a sorte da democracia no Brasil. [xlix]
*Daniel Aarão Reis é professor titular de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de A Revolução que mudou o mundo – Rússia, 1917 (Companhia das Letras)
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Notas
[xxxvii] Pesquisas realizadas entre 7 e 10 de maio de 2020 indicavam o crescimento da rejeição ao governo, alcançando patamar de 43,4% (governo ruim ou péssimo). Já os índices de aprovação caíram para 32%. Cf. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/05/12/cntmda-avaliacao-negativa-de-governo-bolsonaro-chega-a-434.htm, consultado em 26 de junho de 2020. Tais resultados foram confirmados em novas pesquisas, publicadas em 26 de junho de 2020.
[xxxviii]Para a caracterização da paranoia de Bolsonaro e de alguns de seus auxiliares, cf. a transcrição da reunião realizada pelo conselho de ministros, presidida pelo próprio Bolsonaro, em 22 de abril de 2020: http://estaticog1.globo.com/2020/05/22/laudo_digitalizado.Filmada e gravada, o conteúdo da reunião foi divulgado por decisão da Justiça, mostrando-se Bolsonaro e vários de seus correligionários tomados por um delírio de cerco típico das pessoas paranoicas (perseguem, mas se sentem perseguidas). Escrevi a propósito uma crônica: Um governo em cuecas, publicada em 13 de junho de 2020, em O Globo, p. 3. Paulo Sternick, psicanalista, em 21 de junho, no mesmo jornal, p. 3, consideraria a pulsão de morte do Presidente.
[xxxix]Observe-se que o auxílio, de R$600,00 por mês, previsto para durar 3 meses, foi proposto pelo governo em apenas R$ 200,00. Nos debates no Congresso, aumentou para R$500,00 sendo, mais tarde, fixado em R$600,00 pelo próprio Bolsonaro. Reduzido a R$ 300,00, o auxílio foi mantido até o fim do ano de 2020. O auxílio vem socorrendo dezenas de milhões de pessoas e seu impacto foi decisivo para evitar o agravamento da crise econômica e para ensejar a migração de muitos setores da pobreza e da miséria para a chamada classe C, ou seja, uma espécie de classe média inferior. Para a aceitação de Bolsonaro junto às camadas populares,cf. pesquisas realizadas em setembro último: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/09/24/pesquisa-ibope-governo-bolsonaro-e-aprovado-por-40percent-e-reprovado-por-29percent.ghtml. Consultado em 22/10/2020.
[xl] Tais tendências tornaram-se evidentes a partir da divulgação da reunião ministerial de 22 de abril. São defendidas pelos generais que assessoram Bolsonaro, como o gen. Braga Netto, e também pelos ministros de desenvolvimento regional, Rogério Marinho e de Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, cf. nota 44
[xli] Observe-se que V. Orbán foi um dos poucos líderes internacionais a comparecer pessoalmente à posse de Bolsonaro, em janeiro de 2019.
[xlii]ElioGaspari, em sua coluna no Globo, de 10 de junho de 2020, p. 3, registrou reflexões de lideranças políticas (Joice Hasselmann, ex-líder do PSL, partido do governo na Câmara de Deputados) e intelectuais (José Arthur Giannotti, simpático ao PSDB, e Denis Lerner Rosenfeld, da direita democrática) que manifestavam alarme com seus procedimentos autoritários, classificados como chavismo de direita.
[xliii] Além da aprovação de 40%, que consideraram o governo “ótimo e bom”, Bolsonaro ainda conta com 29% que consideraram o governo “regular”. Além disso, recorde-se a força capilar – e popular – dos evangélicos.
[xliv] Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE, o país conta hoje, fins de outubro de 2020, com 14 milhões de desempregados. No quadro atual duvida-se da possibilidade de maciços investimentos internacionais, restando, portanto os investimentos estatais, combinados com setores industriais de intenso aproveitamento da mão de obra, como a construção civil. Por ironia, algo muito semelhante ao realizado pelos governos petistas.
[xlv] Cf. intervenção de Carlos Vainer na emissão Rebeldes, sempre, em três partes, a partir dos seguintes links: https://youtu.be/qXH0-HddWs0; https://youtu.be/CjqIGm7EwaY; https://youtu.be/24BejEGfwmQ.
[xlvi] Alcançaram grande repercussão, manifestos assinados por intelectuais de esquerda e do centro e direitas democráticos: “Estamos juntos”; “Basta” (juristas); “Somos 70%” e “Enquanto houver racismo, não haverá democracia”.
[xlvii] Cabe assinalar, contudo, que diversas manifestações e articulações populares têm se autoidentificado como antifascistas. Assim, não é de se excluir a hipótese que esta terminologia se afirme e se generalize.
[xlviii]S. Zizek, 2017
[xlix] O presente texto atualiza e aprofunda questões veiculadas por artigo intitulado: “A extrema-direita brasileira: uma concepção política autoritária em formação”, publicado no Anuario de laEscuela de História, Universidad Nacional de Rosario, Argentina, em fins de outubro de 2020. Mencione-se igualmente uma primeira versão, intitulada: “Notas para a compreensão do Bolsonarismo”, publicada em abril de 2020 na Revista de Estudos Ibero-americanos, v. 46, n° 1/2020, Seção Tribuna. Revista de História da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUC/RGS, Brasil (Cf. D. Aarão Reis, 2020). Para a presente reelaboração, contribuíram sugestões de Angela Castro Gomes, Janaína Cordeiro, Marcelo Ridenti, Rodrigo Patto Sá Motta e Vladimir Palmeira, embora, de modo algum, possam ser responsabilizados por eventuais imprecisões e erros de avaliação que subsistam no artigo.