Sem a capacidade de (re)pensar sobre si mesma, a universidade corre o risco de estagnar e ser vítima dos seus próprios círculos viciosos. Sem o exercício pleno e coletivo do pensamento crítico, outros processos mais amplos como a reorganização interdisciplinar de suas pesquisas e o processo de ensino/aprendizagem não seriam capazes de se fortalecer e se reinventar se não partissem de critérios metodológicos rigorosos e da capacidade coletiva de construir pontes de comunicação entre alguns conhecimentos e outros, entre algumas disciplinas e outras
Isaac Enríquez Pérez, Alai, 28 de outubro de 2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O triunfo mundial e inquestionável do fundamentalismo de mercado tem como dimensão constituinte a instauração de um pensamento hegemônico que apela ao mito da liberdade individual, à mercantilização de todas e cada uma das facetas da vida social, à racionalidade meritocrática, à sucção e lapidação da práxis política, e ao esvaziamento do Estado. Condição sine qua non deste processo foi o esvaziamento da essência da universidade como organização que origina vanguardas e como bastião do pensamento crítico, a diversidade, o dissenso e a inovação nas formas de edificar e organizar a sociedade. Não se trata de um processo exclusivo ou próprio de algum país, mas de um redemoinho avassalador que se estende mundialmente pelo menos desde a década de 1980.
As universidades não são uma torre de marfim abstraídas da dinâmica social e de suas contradições e convulsões. Contribuem – direta ou indiretamente – à configuração da sociedade, e ao mesmo tempo são uma expressão da mesma. São um crisol que condensa diversas cosmovisões, ideologias, posturas, estilos de vida, pautas comportamentais, debates teóricos, modos de construir o conhecimento e de se posicionar ante a realidade e suas problemática. Isso, em boa medida, explica sua riqueza e sua proclividade à diversidade. De tal maneira que a universidade é um filme em movimento perpétuo que projeta o caráter multifacetado de uma sociedade e seus personagens.
Isso explicaria o incessante assédio infringido – desde fora e de dentro, e apesar de suas próprias inércias conservadoras – contra a universidade como semente da vanguarda, do exercício do pensamento crítico, e da germinação de utopias. De fora, a universidade é atacada por poderes fáticos, sejam empresariais, clericais, governamentais e, até, criminais, que descarregam o implacável chicote do mercado e do consumismo, a idolatria do lucro e da austeridade fiscal, e que a assumem como uma organização defasada dos interesses privados e do seu insaciável afã rentista. Por dentro, a universidade é atacada pelas mesmas estruturas de poder e burocratismo parasitário que também reproduzem lógicas e práticas que a fazem involuir e se aniquilar. O desprezo para com o conhecimento e a diversidade se irradia de ambos os lados, e ameaça a universidade até conduzi-la à inanição e à insignificância.
O sentido sedutor do fundamentalismo de mercado no mundo universitário consistia na instauração do princípio falacioso da eficiência econômica e da racionalidade tecnocrática. A universidade instalada no caminho da meritocracia, acadêmicos e estudantes, em geral, perdem a vocação para o vínculo com as comunidades onde residem. Privilegia-se a relação universidade/empresa privada e estudante/entidade bancária, e mais do que formar profissionais apaixonados pela arte de conhecer, pela vocação de aprender a aprender e pela solução dos grandes problemas mundiais, essa relação estava voltada para o “formação de recursos humanos para responder às exigências da sociedade” – sendo esta última entendida como as exigências das empresas em matéria de mão de obra qualificada.
A docilidade e o conformismo social são duas das atitudes instauradas de forma fervorosa com a irradiação do individualismo hedonista. E as universidades não ficaram de fora depois de ofuscar os discursos e narrativas que questionam o status quo em qualquer de suas formas. A própria universidade foi vítima do medo do futuro e da incapacidade de imaginar e projetar cenários alternativos para a sociedade. Ao mesmo tempo, a universidade se desfez de grandes histórias, narrativas totalizantes, reflexão filosófica e pensamento clássico. Então, subtraído do estudo sistemático e holístico das megatendências, ficou à deriva ao privilegiar o imediatismo, o sectarismo e a futilidade. Talvez o assalto à razão, à verdade e à palavra tenha alcançado sua expressão mais completa com a pandemia de covid-19 e os insistentes sinais de resignação que as universidades demonstraram diante desse fato social total.
A universidade convulsionada pelo “austericídio” não teve escolha senão parcerias público-privadas. Se sobreviveu ao ataque comercial, foi mais porque cedeu à erosão sistemática do pensamento crítico e à erradicação do sentido de comunidade, para entrar numa fase de reforma e reajustamento forçados dos seus planos de estudo para responder às condições e exigências do mercado. Então, substituiu o saber pelo fazer; o processo criativo de ensino/aprendizagem pela transmissão e assimilação mecânica de saberes etnocêntricos que não respondem às especificidades dos problemas públicos locais; a reflexão e análise por técnicas de memorização; e a capacidade de formular problemas de pesquisa pela banalização aguda da palavra. As defasagens e insuficiências nos níveis escolares anteriores implodiram como foguetes dentro dos espaços universitários. Ao mesmo tempo, impôs-se um falso pragmatismo que despreza a construção teórica e a reflexão filosófica. O que os alunos exaltam como “o prático” nada mais é do que uma escaramuça para escapar do rigor na formação de conceitos e categorias com base em um sólido dote de pressupostos e postulados epistemológicos. A teoria é sub-repticiamente desprezada nas universidades porque é assumida como uma entidade estratosférica, estagnada, petrificada e dada de uma vez por todas. Então, se o novo conhecimento não for cultivado e construído, a lacuna entre essa teoria e o mundo fenomênico torna-se abismal. Daí o mal-estar na teoria e com a teoria. Mas não porque a práxis da construção teórica não seja útil, mas porque não é dotada de novo vigor e sua inadequação histórica não é transcendida do desdobramento da imaginação criadora. Na maioria dos casos, se aposta na utilização dos mesmos “quadros teóricos” sem criatividade e na tentativa de um empirismo quantitativo descontextualizado do substrato epistemológico, histórico e geográfico.
O potencial transformador do conhecimento e sua construção coletiva se perdem. É justamente a atual crise pandêmica que exacerbou este último exercício, ao tornar o distanciamento social um imperativo que tem como correlato a virtualização do ensino superior.
A universidade é despojada de sua função humanística à medida que a mercantilização da vida social, o consumismo e a cultura do descarte são impostos e desigualdades globais extremas são reproduzidas dentro dela. Mas esta erosão ou reconversão das funções sociais da universidade não é acidental ou isolada, mas inscreve-se no declínio do público e no enfraquecimento e privatização do Estado.
Se o Estado está ausente, ineficaz e prostrado diante dos problemas públicos que tendem cada vez mais a ser globais e escapam do seu controle e jurisdição, e se o senso de comunidade se esvai diante disso, a universidade não está fora dessas tendências. Nem da inércia inerente às disputas de poder que as diferentes facções das elites apresentam para dominar o espaço público. As elites políticas e empresariais ainda se formam nas universidades e dali perfilam a construção e reconfiguração das estruturas de poder, riqueza e dominação. No entanto, isso não supõe que as universidades, em tantas sementeiras, respondam de maneira automática aos interesses desses poderes fáticos e dos interesses criados por esses grupos dominantes. Pois as universidades, por si mesmas, são sistemas complexos, dotados de múltiplas dimensões que se intergeram para formar e reproduzir um todo articulado e multifacetado que mantém em tensão constante o conhecimento, sua utilidade, seus usos e as apreciações éticas sobre isso.
Ao ficar se massificar durante as primeiras décadas da segunda metade do século XX, a universidade deixou de ser palco exclusivo das elites, mas abriram-se amplos espaços de acesso das classes trabalhadoras e, à medida que penetraram em suas estruturas, a diversidade se ampliou nas formas de pensar, construindo conhecimentos e fortalecendo certas vocações sociais. Mas isso não persistiu, já que o fundamentalismo de mercado subverteu as universidades após empreender contrarreformas que começaram a esvaziar aquela substância derivada do pacto social do pós-Segunda Guerra entre Estado, capital e força de trabalho. Vários sintomas foram levantados como prova disso:
a) o abandono do ensino superior público por ser considerado ineficiente e desvinculado das demandas do mercado;
b) a cobrança de taxas ou taxas de inscrição e o processo de elitização para admissão de jovens, que no seu conjunto reforçam os mecanismos de exclusão social;
c) a expansão de estruturas quase aristocráticas e antidemocráticas em seus processos de tomada de decisão;
e) no caso de sociedades subdesenvolvidas, a proliferação de trabalhos não remunerados e mal remunerados em suas unidades acadêmicas.
Se a diversidade é o signo da universidade, o que se apresenta também é uma relação nada concisa entre as elites universitárias e aquela diversidade que sustenta vanguardas, exibe pensamento crítico e busca estimular a mobilidade social. Se o fundamentalismo de mercado chegou às universidades, foi porque suas elites e burocracias atuaram como correias de transmissão, e a partir daí o filtraram silenciosa e imperceptivelmente em diferentes escalas e em múltiplas direções, sem olhar para o caráter comunitário do conhecimento.
Para reverter essas tendências implantadas desde a década de 1980, as universidades precisam urgentemente reivindicar o pensamento crítico não só como instrumento epistemológico para gerar dissidências nas ciências e humanidades, mas também para que a universidade se questione constantemente para compreender o alcance e as limitações de suas estruturas, organizações e práticas diárias. Sem a capacidade de (re)pensar sobre si mesma, a universidade corre o risco de estagnar e ser vítima dos seus próprios círculos viciosos. Sem o exercício pleno e coletivo do pensamento crítico, outros processos mais amplos como a reorganização interdisciplinar de suas pesquisas e o processo de ensino/aprendizagem não seriam capazes de se fortalecer e se reinventar se não partissem de critérios metodológicos rigorosos e da capacidade coletiva de construir pontes de comunicação entre alguns conhecimentos e outros, entre algumas disciplinas e outras.
As sociedades contemporâneas precisam de universidades, mas estas, além dos ataques furiosos ou das defesas hipócritas das elites políticas e empresariais, precisam se reformar não para estarem sujeitas ao mercado e à falaciosa liberdade individual, mas à própria lógica do conhecimento e às necessidades das sociedades que pagam por seus orçamentos. São reformas organizacionais, mas também acadêmicas que subvertem suas estruturas de poder e aquela correlação de forças nem sempre favorável à práxis acadêmica.
P.S.: este ensaio não é um exercício de resposta ou uma posição a respeito dos falsos debates que mostram posições polêmicas em relação à Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), iniciadas pelo Presidente dos Estados Unidos Mexicanos, Andrés Manuel López Obrador, na última quinta-feira, 21 de outubro até os dias seguintes, e continuou por uma oposição infame que quando era governo negou as Instituições de Ensino Superior mexicanas. Trata-se de transcender essa miopia e privilegiar processos mais amplos que derrubem o curto prazo oportunista e ampliem o olhar sobre o caráter estrutural e de longo prazo que recai sobre as universidades no mundo. As tendências são globais e um olhar de aldeia na universidade apenas enreda os problemas e torna as soluções possíveis mais caras.
Isaac Enríquez Pérez, sociólogo e economista, é pesquisador da Universidade Autônoma do México - UNAM