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Por que é preciso resgatar a arte e os artistas diante da crise

O setor artístico no Brasil emprega mais de 5 milhões de pessoas e corresponde a 4% do PIB nacional.Texto de Fernanda Azevedo, atriz e militante do PSOL*

24 de maio de 2020

Cara a cara com esta realidade horrenda que pode ter parecido uma mera utopia em toda a existência humana, nós, os inventores das fábulas, que acreditamos em qualquer coisa, nos sentimos inclinados a acreditar que ainda não é tarde demais para nos engajarmos na criação da utopia oposta. Uma nova e avassaladora utopia da vida, na qual ninguém será capaz de decidir como os outros morrerão, em que o amor provará que a verdade e a felicidade serão possíveis, e em que as raças condenadas a cem anos de solidão terão, finalmente e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra. 

Gabriel Garcia Márquez (1927-2014), do discurso de aceitação do Prêmio Nobel de Literatura, 1982

No dia 27 de março de 2009, Augusto Boal escreveu uma carta a pedido das Nações Unidas para a comemoração do Dia Mundial do Teatro. Naquele texto, o dramaturgo e diretor teatral afirmou ser o teatro, mais do que um evento estético, uma forma de vida. Todas as relações e rituais sociais são construídos como forma teatral, dos casamentos aos funerais, das plenárias nos parlamentos à conquista de uma amizade, dos jogos infantis à uma sessão no tribunal.

Tornar conscientes estes "espetáculos da vida diária" seria uma das principais funções das artes. O teatro – a arte em geral – nos possibilita tomar a distância necessária para analisar e, portanto, ter um olhar crítico sobre o mundo para além das aparência imediatas. E mais, nos possibilita sonhar com outros mundos possíveis. Que perigo!

Os e as artistas, nesta perspectiva, não escapam ao espírito do tempo e, nos casos em que seus trabalhos assumem um certo protagonismo social, podem “responder aos perigos de sua época”. Toda produção artística está, neste sentido, vinculada à História e ao modelo de sociedade na qual se insere. Cabe aos envolvidos neste processo escolher de que lado se posicionam: do lado do apaziguamento social, do falseamento da realidade e da capitulação à forma-mercadoria ou do lado da resistência e da práxis revolucionária; do lado do opressor ou do lado dos oprimidos.

Sobretudo em razão dos movimentos de resistência popular ao longo dos tempos, temos alguns bons exemplos de artistas engajados na luta política. Bertolt Brecht e seu teatro épico dialético e popular que, conectado ao contexto histórico, tendo o homem no centro de suas experimentações como sujeito e responsável de suas ações, investigou os mecanismos sociais a fim de transformá-los. O teatro de agitação e propaganda soviético e alemão, ferramenta de luta utilizada pelos trabalhadores nos períodos revolucionários.

Os artistas visuais Frida Khalo e Diego Rivera, que estiveram ligados ao movimento comunista Mexicano, aos camponeses zapatistas, participaram ativamente da vida política de seu país. Julio Cortázar dedicou esforços e os direitos de alguns de seus livros à Revolução Sandinista na Nicarágua. Nos anos 1960 e 70, cineastas, escritore(a)s, artistas plásticos, de teatro e música que resistiram ao autoritarismo das ditaduras militares nos países latino-americanos e ousaram sonhar com uma nova ordem social baseada na justiça e na igualdade. E mais próximos de nós, as experiências de um sujeito histórico ressurgido (e reinventado) nas últimas décadas no Brasil: o Teatro de Grupo.

A experiência do teatro de grupo paulistano traz exemplos de amadurecimento da reflexão política sobre a necessidade de trabalhar a partir de um novo modo de produção, desenvolvendo uma práxis no sentido oposto à alienação da divisão social do trabalho e causando um estranhamento dentro da estrutura de funcionamento do mundo capitalista. Embalados também na herança política das lutas sociais, vimos crescer a voz dos coletivos de cultura negra e periférica que sempre se organizaram, mesmo à margem das políticas públicas, e atualmente fazem a brava disputa por espaço político e pela materialidade necessária para realizarem seus trabalhos. Neste exato momento, durante a pandemia da Covid-19, muitos dos centros culturais nas periferias das grandes cidades servem como QG de atendimento às populações mais carentes e local de distribuição de cestas básicas.

Aqui vale um alerta: não é coincidência que a estrutura material, mesmo que precária, que possibilitou o desenvolvimento destas experiências coletivas nos últimos anos esteja sendo rapidamente desmontada pelos atuais governos de direita. A destruição da cultura não é um acaso, é um projeto político.

Em todo Brasil, o ano de 2019 foi de muita luta da classe trabalhadora contra as políticas neoliberais e a destruição dos direitos da população. E na área da cultura não poderia ser diferente. Trabalhadores e trabalhadoras da arte, assim como estudantes, servidores públicos e professores, também enfrentaram a sanha privatista dos governos, que avançaram, mais do que nunca, contra as políticas públicas conquistadas pelos movimentos sociais.

Além de seu importante papel social, a arte também ocupa um espaço relevante na cadeia de trabalho do país. Segundo o IBGE, o setor artístico no Brasil emprega hoje mais de 5 milhões de pessoas e corresponde a 4% do PIB nacional. No estado de São Paulo a cultura representa 3,9% do PIB e gera em torno de 1 milhão de empregos.

No momento em que nos encontramos - de pandemia, crise política e civilizacional -, na condição de trabalhadores autônomos precarizados, os artistas se veem diante de uma dupla tarefa : sobreviver – muitos sem salário, acesso a qualquer tipo de seguridade social e perspectiva de retorno de suas atividades – e, ao mesmo tempo, continuar contribuindo com o debate público através de suas obras. Não podemos abrir mão destes nossos arautos da utopia nem da poesia como ferramenta de transformação social. É preciso agir em defesa da liberdade de expressão e de condições dignas de produção da categoria artística, em especial dos que fazem parte da base de produção – artistas e técnicos.

Atores somos todos nós. Cidadão não é aquele que vive em sociedade, mas aquele que a transforma.

(*) Fernanda Azevedo é também educadora, pesquisadora teatral e integrante da Mandata Feminista Isa Penna, PSOL-SP