Mais de 5.300 menores de 13 anos no Brasil denunciaram abusos sexuais em 2019. A ponta do iceberg, pois considera apenas o que chega aos ouvidos da polícia.
Naiara Galarraga Gortazar, El País Brasil, 18 de maio de 2021
Geralmente são notícias curtas na imprensa local. “Um homem e uma mulher foram presos pelo estupro de uma menina de 13 anos. O delegado explica que o homem, casado com uma tia da vítima, a estuprou durante seis anos. Os fatos eram do conhecimento da mãe e da avó”. As prisões aconteceram na quarta-feira, 5 de maio, em Pinheiros, cidade de 77.000 habitantes no Norte do Brasil. Nem a idade da vítima nem as circunstâncias são algo excepcional. Informação anódina que narra crimes cotidianos. As estatísticas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) são chocantes. A cada hora, quatro meninas menores de 13 anos são estupradas no Brasil, de acordo com os números mais recentes. Mais da metade das 5.636 vítimas em 2019 tinha menos de 13 anos.
E isto é apenas a ponta do iceberg, pois considera apenas o que chega aos ouvidos da polícia ou dos serviços de saúde. “A violência sexual contra crianças está envolvida por um pacto de silêncio”, enfatiza Márcia Bonifácio, chefe de uma equipe de psicólogos e psicopedagogos da Prefeitura Municipal de São Paulo que apoia as escolas quando surge um aluno problemático. Seu comportamento muitas vezes esconde que é vítima de violência sexual ou de algum outro tipo.
Três brasileiras, a educadora Bonifácio, a promotora Renata Rivitti e a diretora do Instituto Liberta, Luciana Temer, usam sua vasta experiência para ajudar a entender os contornos desse crime tão arraigado nesta cultura patriarcal e machista repleta de tabus que, ao mesmo tempo, promove a sexualização precoce. “É um círculo muito perverso com poucos finais felizes”, diz Bonifácio.
A vítima pode ser uma menina de quatro anos que se masturba quatro vezes ao dia na aula, uma garota de 10 anos que começa a mostrar a figura de uma mulher grávida, um menino de sete anos que obriga seus colegas a fazer sexo oral, uma adolescente aplicada e retraída que aparece com um olho roxo e oferece explicações pouco credíveis... As vítimas não seguem um padrão. Os agressores sim: “Não tenho notícias de nenhum caso em que a agressão tenha sido perpetrada por um estranho”, diz Bonifácio. Geralmente pertence ao entorno familiar. O pai, o padrasto, irmãos mais velhos, tios, avós, amigos da família...
Aqueles que combatem a violência sexual contra as crianças insistem em como ela é democrática. No muito desigual Brasil, não diferencia raças ou classe social. A Unicef estima que 120 milhões de mulheres tiveram um contato sexual indesejado antes dos 20 anos.
O Código Penal Brasileiro considera estupro de pessoa vulnerável manter relações carnais ou praticar qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos. As agressões podem começar muito cedo e durar muitos anos. Não é rara a cumplicidade da mãe ou de outros parentes, nem que a vítima seja responsabilizada por destruir a família ou deixá-la sem amparo quando o agressor é quem traz o dinheiro para casa. Costuma ser um processo in crescendo, no qual os abusos são cada vez mais invasivos, mas sutis. Muitas vezes não deixam marcas.
“Quando têm entre zero e seis anos, as vítimas têm pouco repertório, podem até perceber isso como uma brincadeira, como uma demonstração de carinho, sentem prazer, não têm parâmetros e é muito comum o agressor exigir que guardem o segredo”, explica a promotora Rivitti. Elas são pequenas demais para distinguir o que é certo e o que não é. Uma dificuldade que não depende apenas da idade. Bonifácio, cuja equipe se chama Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem, lembra o caso de uma adolescente de 13 anos de uma família evangélica que descobriu em uma aula de ciências que aquilo que o pai fazia com ela desde que com oito menstruou pela primeira vez era sexo. Aquela garota não tinha televisão, celular ou internet. Por isso, diz a promotora, as aulas de educação sexual são tão importantes.
Os casos mais graves vêm à tona em um hospital
Detectar o abuso é o primeiro passo. Quando são pequenos, geralmente se descobre pelo comportamento na escola. Se forem mais velhos, contam a alguém de confiança. Os casos mais graves vêm à tona em um hospital.
Descobrir o abuso não é fácil, proteger a vítima sem vitimizá-la, tampouco. E perseguir o crime, menos ainda. A promotora Rivitti afirma que levar a vítima para um abrigo deve ser o último recurso. Grande é o risco do que chamam de violência institucional. Se depois de peregrinar por diferentes serviços para repetir seu primeiro relato perante o conselho tutelar, a polícia, o hospital, submetendo-se a uma avalanche de perguntas e um minucioso exame pericial, a menina acaba longe de seus parentes, de seu bairro, de sua escola e de seus amigos, ela se culpa. Diz ‘minha boca está amaldiçoada, eu falei e me castigaram’.” Algumas se desmentem porque o preço que pagam por revelar o abuso não lhes compensa.
“Temos que dar informações às vítimas para que entendam o que é o abuso, para que saibam relatá-lo e temos que dar crédito ao que dizem”, insiste a promotora Rivitti. Isso é um começo. Depois tentam identificar um membro da família para proteger a menina em casa e afastar o estuprador. Se ele é fonte de renda, tentam buscar ajuda financeira.
E a punição aos agressores? Conseguir um caso suficientemente sólido para ser levado ao juiz é outra grande dificuldade. Geralmente é a palavra da criança contra o adulto. O pior pesadelo de quem combate o estupro infantil é que o tribunal absolva o acusado. “Não podemos entregar o cordeiro ao lobo com aval judicial”, alerta a promotora.
Apesar da complexidade do desafio, cada uma das três luta em uma frente para que na próxima hora quatro brasileiras menores de 13 anos não sejam estupradas. Temer o faz à frente do Instituto Liberta, com documentários como Um crime entre nós, com o qual busca sensibilizar, romper “o círculo perverso da normalização do abuso”. Entre os recrutados para a missão, um dos homens mais famosos do Brasil, o apresentador da Rede Globo Luciano Huck, cujo nome é citado como candidato à presidência.
A promotora Rivitti tenta replicar no Estado de São Paulo o modelo que criou em Jacareí, cidade de 235.000 habitantes do interior, onde através da coordenação dos serviços educacionais, sociais e de saúde conseguiu proteger melhor as vítimas, o que levou a mais denúncias, menores testemunhas em julgamentos e mais condenações. Ela trabalha com uma rede de 70 outros promotores.
Com as escolas fechadas durante meses devido à pandemia, a equipe liderada por Bonifácio abriu novos canais para os alunos lançarem um SOS. Criou um site que canalizou as denúncias de 200 casos de violência em nove meses. Destes, 56 eram de violência sexual.