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Quem disse que a ciência não tem (ou não precisa ter) lado?

19 de janeiro de 2021

Recentemente, eu li uma reflexão de um colega cientista na qual ele afirmava que era muito difícil ser cientista em um mundo tão partidarizado e polarizado. Essa afirmação reacendeu uma série de inquietações que têm tomado conta de mim desde o ano passado em meio à crescente onda de negacionismo científico no Brasil (e, também, no mundo) no cenário da emergência da pandemia do Sars-Cov-2, o novo coronavírus. Para mim, está muito evidente de que a negação da ciência em um contexto de profunda crise sanitária-ecológica-humanitária como esse é uma ferramenta política (embora o discurso para o senso comum seja profundamente despolitizado), como já defendi em um texto anterior (ler aqui). No entanto, meu questionamento principal aqui é outro: de qual lado a ciência deve estar nesse contexto? Afinal, a ciência precisa mesmo assumir um lado em um cenário como esse, de polarização de interesses políticos? A seguir, segue algumas breves reflexões pessoais a respeito.

Para início de conversa, precisamos desmistificar de uma vez por todas esse papo de que a ciência é imparcial ou neutra (assim como também não é o jornalismo, por exemplo). Trata-se de um argumento artificial e, por vezes, falacioso. A ciência é uma ferramenta de apreensão da realidade, uma vez que é formadora de conhecimento, embora não seja a única. Dessa forma, essencialmente ela não se propõe a monopolizar a verdade. No entanto, devido ao seu poder de precisão, fruto de um criterioso exame de evidências que sustenta diferentes hipóteses, ela é considerada um dos mecanismos mais confiáveis de elucidação da natureza não somente para nós, cientistas, como para a sociedade civil como um todo. Defendemos, pois, que é incoerente e falacioso conceder a todos os pontos de vista de uma mesma questão a mesma legitimidade científica.

Assumir que a ciência é neutra ou imparcial seria assumir que ela é despida de valores, o que não é verdade. A questão é a natureza desses valores. Ao longo da história, a ciência (por meio de suas instituições fomentadoras) já assumiu diferentes lados: desenvolveu vacinas e medicamentos que salvaram milhares de vidas (indo muitas vezes até mesmo contra os interesses do próprio Estado); e também ajudou a desenvolver armas de destruição em massa (financiadas pela necropolítica de governos corruptos comprometidos com o poder e o lucro), indo de encontro a sua própria essência de comprometimento com a ética e a vida.

No contexto atual, deslegitimar a ciência tem sido um instrumento cada vez mais eficaz nas mãos de agentes públicos corruptos (incluindo pesquisadoras e pesquisadores, lastimavelmente), comprometidos com o lucro e a própria ascensão política do grupo que representam em detrimento da defesa da verdade e da vida. Aqui no Brasil, temos acompanhado em tempo real o negacionismo científico pelo governo Bolsonaro em torno da pandemia do novo coronavírus causar milhares de mortes em todo o país. Como ficar imparcial ou neutra em um cenário tenebroso como esse? No momento que redijo esse texto, pessoas morrem por asfixia devido à falta de estoque de oxigênio nos hospitais em Manaus (AM)! É a necropolítica e o anticientificismo caminhando (ou melhor, correndo) de mãos dadas. Nesse contexto, nós, cientistas, temos um dever ético de defesa da própria ciência como mecanismo de defesa da veracidade dos fatos e da ética, mas, acima de tudo, da vida. Para isso, devemos sair da nossa bolha e, sim, tomar partido.

Henrique Magalhães é ecossocialista e militante da Insurgência/PSOL. Biólogo, educador e consultor ambiental. Doutorando em Etnobiologia e Conservação da Natureza (PPGEtno/UFRPE).