Temos que decidir o que priorizar: se os desperdícios de energia ou o combustível para tratores e colheitadeiras, se os cassinos ou os hospitais, se a Amazon ou a mercearia do bairro, se o metrô e as utilidades essenciais ou espelhinhos brilhantes que não duram. Não haverá o suficiente para tudo, e por isso, democraticamente, racionalmente, temos que tentar escolher o melhor para criar uma nova sociedade que, a partir dos despojos e dos erros da atual sociedade, consiga renascer com força.
Antonio Turiel e Juan Bordera, Ctxt, 11 de agosto de 2022. A tradução é do Cepat.
Imagine que uma noite difícil está chegando. Você tem quatro filhos, apenas um pão e duas opções: racionar em partes iguais ou deixar o mais forte comer o pedaço que quiser, mesmo sabendo que os outros vão morrer de fome. O humano, o honesto, vem em primeiro lugar, certo? Não será preciso dizer muito mais, qualquer um de nós faria o mesmo. Bem, nem todos.
Alguns dirigentes políticos estão mostrando que Einstein intuiu corretamente que a estupidez humana era a única coisa que não conhecia limites. Esses dirigentes estão patinando sobre gelo muito fino. A principal razão é que o decrescimento não pode mais ser escondido atrás de uma bandeira ou atrás de uma miragem luminosa. As pessoas não comem bandeiras e conseguimos enxergar o que é um desperdício. Daí o esforço das grandes potências econômicas em investir e controlar as mídias que tanto adulteram a realidade.
Mas o espetáculo começa a ser difícil de esconder, e aparecem cada vez mais artigos, jornalísticos e acadêmicos, melhores e piores, que comentam e demonstram uma realidade incontestável: tanto as mudanças climáticas quanto a escassez estão fazendo desaparecer o tabu do decrescimento. Mesmo presidentes como o finlandês não hesitaram em colocar em palavras claras para quem quiser ouvir: as pessoas na Finlândia e em outros países da União Europeia terão que se acostumar com o fato de que a economia não vai crescer todos os anos.
É por isso que as medidas de poupança energética propostas pelo Governo e aprovadas pelo Conselho de Ministros, embora vão na direção correta, ficarão aquém do que está por vir, e deveriam ser tomadas como algo racional e permanente. Algo que deve ser acompanhado por medidas mais profundas de redistribuição da riqueza, ou então haverá problemas.
Na Era do Descenso Energético que estamos começando a entrar, com o tempo, essas medidas – que não são algo exclusivo do nosso país – serão normalizadas e ampliadas, e faríamos bem em assumi-las rapidamente.
Não é um grande sacrifício limitar as horas em que as luzes ficam acesas ou moderar a temperatura do ar condicionado. Mas, é claro, há outra opção para aqueles que se dizem "amantes da liberdade" a todo custo. Uma opção obviamente perversa: deixar que a sábia mão invisível do mercado aloque recursos escassos de forma eficiente. Há menos energia disponível? Bem, para aqueles – cada vez menos – que podem pagar. Que porque alguns desperdiçam combustíveis fósseis ou têm lucros extraordinários, outros não conseguem nem esquentar uma tigela de sopa? Liberdade! Desde que o mundo é mundo.
É engraçado como a palavra racionamento significa coisas diferentes dependendo do chão que você pisa. Na Espanha, é sinônimo de pobreza e, para muitos, de derrota. O fato de que o racionamento se estendesse tanto – o pão foi racionado até 1952 durante um pós-guerra que foi eterno para quem o sofreu – enquanto não existia nos demais países ocidentais, aumentou a sensação de um episódio a ser esquecido e que nunca deve se repetir. Esse fantasma será agitado pelos panfletos da extrema direita, o temido e indesejável racionamento (que veio por sua própria conta) volta. No entanto, há outros casos: os ingleses lembram o racionamento como algo mais positivo, pois os ajudou a “vencer” os nazistas. As experiências não são apenas o que são, mas o que significam.
Talvez por isso, com excessiva frequência a má política não apele ao racional, mas ao emocional. Assim, tentam usar o emocional como forma de camuflar o irracional e pouco justificável de muitas de suas decisões. Corrupção? Mortes em domicílios? Fechamento de hospitais e degradação dos serviços públicos básicos? Nada disso importa: o importante é que o Governo não lhes tire a liberdade, homens de pouca fé.
Mas entre uma piada e outra, a verdade aparece: quem coloca sua liberdade em perigo não é quem eles querem fazer crer. Não é a Agenda 2030 nem o socialcomunismo. É o mercado, amigo. Na defesa a todo custo de um neoliberalismo que será cada vez mais disfuncional está inserida a inevitável destruição do público. Em tempos de menos energia disponível, seguir as receitas neoliberais habituais só agravará os problemas, devido à própria natureza do sistema que os causou.
O exemplo do racionamento do início é uma caricatura, uma simplificação que nos ajudou a esclarecer a diferença – material, mas também moral – entre as diferentes opções, mas na Era do Descenso Energético não estamos realmente diante de um dilema, mas de um trilema: temos que escolher uma das três opções.
A primeira opção é a das Medidas Conjunturais. Neste caso, pensa-se que os problemas com a energia são temporários e trata-se de racionar apenas o suficiente para afetar minimamente a economia. Mantém-se a economia de mercado e, exceto pelos cortes, tudo continua igual. Tem a desvantagem de que se as coisas continuarem a piorar, mais e mais pacotes do mesmo tipo de medidas serão tomados, cada um retificando o anterior, causando ceticismo, incompreensão e cansaço da população. Essa é a abordagem majoritária no mundo e a que é defendida pela União Europeia e pelo governo da Espanha. Dentro dessas medidas também cabem as elitistas, que procuram cortar mais de quem tem menos. Não é necessário dar um exemplo disso (com nome e dois sobrenomes), uma pessoa que está disposta a ir – de novo – contra a cúpula de seu próprio partido e contra a lucidez mais básica.
A segunda opção é tomar Medidas Estruturais. Neste caso, aceita-se que os problemas sejam permanentes. Faz-se uma previsão de quanto estará disponível e toma-se uma decisão sobre como será alocado (quanto é dado e para quem). Obriga a tomar muitas medidas adicionais, disposições, supervisões, regimes punitivos, etc. Essas medidas são extraordinariamente complexas de adotar e caras de implementar, e têm a desvantagem de que, se o descenso energético continuar, logo se tornarão obsoletas. Esse tipo de racionamento é, por exemplo, o que está ocorrendo em países praticamente em colapso, como o Líbano ou o Sri Lanka.
A terceira opção seria adotar Medidas Decrescimentistas. Implica aceitar que os problemas não são apenas permanentes, mas que se agravarão progressivamente. Necessita-se, portanto, de um esquema de racionamento flexível, que se adapte à disponibilidade (ou indisponibilidade) dos recursos à medida que esta muda. Também é necessário abrir um debate aprofundado com a sociedade, que é fundamental para entender o que está acontecendo, para que a cumplicidade e a cooperação possam ser tecidas em torno de um objetivo comum compartilhado pela maioria, escolhendo setores essenciais e apoiando-os com vigor, inclusive aumentá-los, mas também exige assumir que haverá outros que terão de ser reduzidos. É prioritário distribuir tanto a carga tributária quanto garantir um mínimo de qualidade de vida. Embora seja necessário racionar, o bem viver é possível e mais desejável do que nunca.
O problema com as Medidas Decrescimentistas é a tentação de alguns setores de implementá-las de forma autoritária, sem a necessidade de buscar um consenso social democrático, pois obviamente seria mais fácil impô-las pela força; e que, em vez de um esquema de racionamento decrescimentista, nos levaria ao ecofascismo. Nenhum país do mundo está adotando esse tipo de racionamento, embora alguns países possam estar caindo em um ecofascismo que – em formas de baixa intensidade – já está latente.
Que fique claro que nenhuma das opções de racionamento é boa. Estamos falando de racionar, e racionar significa limitar. Não há o suficiente e você tem que escolher como é distribuído. Não é uma situação que qualquer um possa desejar. Mas é uma situação que não será negociável e que temos que enfrentar como adultos, com a ajuda da inteligência coletiva.
Também é importante deixar claro que existem muitas maneiras aceitáveis de se adaptar ao Descenso Energético, mas todas requerem algum tempo. Por exemplo, um dos grandes problemas atuais é a falta de fertilizantes nitrogenados devido ao custo e à escassez do gás natural. E embora seja do nosso conhecimento que o abuso dos fertilizantes nitrogenados leva à degradação do solo e da água, e que temos que trilhar o caminho para outras formas de agricultura verdadeiramente sustentáveis e resilientes (destaco, de modo especial, o trabalho da pesquisadora do CSIC Marta Rivera e de Eduardo Aguilera), também é verdade que não podemos transformar nosso sistema agrícola da noite para o dia enquanto continuamos a alimentar a população.
Não podemos suprimir os enormes insumos energéticos da alimentação e de tantas outras coisas de repente, porque, como uma pessoa viciada em uma droga, a falta repentina da substância que gerou a dependência pode causar mais mal do que bem. Precisamos de um plano de descenso adequado, um plano de transição lento e deliberado, com muito trabalho no campo, muita tentativa e erro, até conseguirmos que as coisas funcionem no terreno, em todas as áreas, desde o setor primário até o industrial e os serviços.
Mas seja como for, temos que nos livrar da droga dos combustíveis fósseis antes que ela nos abandone pela Geologia e pela Física. E as energias renováveis serão a nossa metadona. Essencial, para passar a síndrome de abstinência, mas nem de longe pode ser igual à droga original.
Enquanto estivermos confusos com esquemas conjunturais, discutindo qual setor é mais importante pela quantidade de PIB ou emprego que gera, supondo que vamos conseguir ficar nos paraísos artificiais criados pelos combustíveis fósseis, teremos um momento pior quando, de repente, cortarmos nosso suprimento dessas substâncias das quais somos tão dependentes. Este é o debate que, como sociedade, temos que fazer. Temos que racionar, não temos escolha. E como o racionamento não será opcional, devemos tentar torná-lo o mais racional e justo possível.
Não se trata de escolher entre um mundo sombrio e deprimente ou um mundo iluminado com milhares de watts de potência: trata-se de escolher entre um mundo onde a maioria das pessoas possa viver com dignidade, ou um mundo em que poucos desfrutem e a maioria está atolada na miséria abjeta. E, spoiler, esses poucos não vão desfrutar muito com uma cidade insegura (ou um país ou um mundo). Se a maioria passa mal, ninguém passa nada bem; é isso que precisamos entender de uma vez por todas.
Temos que decidir o que priorizar: se os desperdícios de energia ou o combustível para tratores e colheitadeiras, se os cassinos ou os hospitais, se a Amazon ou a mercearia do bairro, se o metrô e as utilidades essenciais ou espelhinhos brilhantes que não duram. Não haverá o suficiente para tudo, e por isso, democraticamente, racionalmente, temos que tentar escolher o melhor para criar uma nova sociedade que, a partir dos despojos e dos erros da atual sociedade, consiga renascer com força. Nada está perdido, como alguns querem nos fazer crer que dizemos.