As feministas que têm sido alvo de bullying por parte dos neonazis russos denunciam como hipócrita a justificação de Putin para a guerra. Ella Rossman da Resistência Feminista Anti-Guerra russa defende que o presidente russo é movido pela ideia de um “império imaginário”.
Frieda Afary entrevista a Ella Rossman, Esquerda.net, 9 de abril de 2022
Frieda Afary, da página Progressistas Iranianas em Tradução, ouviu numa entrevista longa, a 22 de março, Ella Rossman, uma feminista russa que faz parte da coordenação do grupo Resistência Feminista Anti-Guerra e que é doutoranda no University College London, sendo especialista na questão de género na história soviética.
Rossman, que está fora do país mas permanece em contacto com as ativistas que lutam na Rússia, explicou que os protestos contra a guerra continuam a ser feitos todos os dias mas que “está a torna-se cada vez mais perigoso” fazê-lo porque a repressão está a tornar-se mais dura. Isto apesar desde o início da guerra a Procuradoria do país ter anunciado que quem apoiasse a Ucrânia seria acusado de traição, um crime que na Rússia tem uma pena de prisão de vinte anos. Depois disso, chegou a nova lei que estabelecia penas de prisão de 15 anos para quem espalhasse “informação falsa” sobre a guerra.”
A repressão do regime não tem conseguido travar as ações anti-guerra, nomeadamente as protagonizadas pelo movimento feminista. A ativista relata como a Resistência Feminista Anti-Guerra foi criada a 25 de fevereiro a partir de um grupo coordenador de dez pessoas que já se conheciam há muito apesar de trabalharem em projetos diferentes e como agora são seguidas por 30.000 mil pessoas nas suas redes sociais. Os seu canais, nomeadamente o de Telegram, servem para enviar informações sobre a guerra “que mostram o que está mesmo a acontecer para além da propaganda russa”, para propor vários tipos de ação aos grupos locais que depois decidem o que fazer, para mostrar o que as ativistas feministas ucranianas estão a fazer e a dizer do seu lado e para apelar para ativistas que ativistas de outros países pressionem os governos que apoiam Putin.
O envolvimento feminista no movimento contra a invasão foi natural, pensa a investigadora, porque “esta guerra destrói tudo aquilo que tentámos construir”. E chegou num momento em que o movimento feminista estava em crescimento pelo país com mais de 45 grupos feministas em várias cidades.
Com os meios de comunicação social independentes “bloqueados ou destruídos” e redes sociais como o Facebook, Twitter e o Instagram a não funcionarem e face a uma “propaganda agressiva”, ao ativismo online junta-se o ativismo fora da rede. As feministas distribuem os tradicionais panfletos e colam cartazes mas também colocam artigos de informação alternativa nas caixas de correio e escrevem slogans e informação nas notas que andam circulam pelo país.
Ella Rossman avalia o governo russo como uma ameaça para os direitos das mulheres. E não só no seu país. Para ela, o governo russo tornou-se “um dos grandes centros mundiais do neo-conservadorismo”. Esta viragem neo-conservadora na Rússia começou nos anos 2010 “quando a Rússia tentou começar a promover a ideia de valores tradicionais” que se oporia a tudo o que seria ocidental: direitos humanos, LGBT, das mulheres. O quadro pintado na altura era que qualquer tipo de influência externa seria “uma ameaça ao modo de vida russo, à sua independência”.
Nesta altura, a Rússia deixou de colaborar com instituições internacionais em assuntos de género. Por exemplo, recusou de ratificar a convenção de Istambul sobre combate à violência de género e doméstica. E implementou um pacote legislativo conservador com a proibição de promover valores não tradicionais para menores e restrições ao aborto.
A esta viragem conservadora interna juntou-se a colaboração “muito ativa” com a extrema-direita e organizações ultra-conservadoras “em todos os cantos do mundo” para as quais foi canalizado dinheiro russo. O diagnóstico é assim que, por isso, a Rússia de Putin é uma ameaça ao movimento das mulheres, LGBT+ e às minorias étnicas “em todo o mundo”.
Para além disso, o mesmo governo que promove misogenia, “espalha uma visão imperialista do mapa mundial”. Depois da queda da URSS não houve, diz a académica, uma verdadeira discussão a descolonização desses territórios e sobre a descolonização das mentes: “o povo russo e as autoridades ainda pensam na Rússia como um império e pensam na ex-Repúblicas da URSS não como não países soberanos mas como países que têm de voltar a ser territórios russos outra vez”.
Ella Rossman denuncia ainda o discurso sobre a desnazificação da Ucrânia como “hipócrita”. E diz que isso para muitas feministas russas é ainda mais evidente porque elas foram ameaçadas durante anos pelos neonazis e nacionalistas russos que organizavam bullying online, divulgavam moradas e números de telefone e outra informação pessoal mesmo não pública. A polícia não reagia a qualquer queixa sobre isto e o regime de Putin também não mostrava qualquer tipo de preocupação.
Outro aspeto da mesma hipocrisia revela-se na perseguição do governo a minorias étnicas. Há mais de 119 povos e grupos étnicos diferentes na Rússia e “muitos dos representantes destes grupos étnicos” foram ameaçados e perseguidos pelo governo, tendo alguns sido acusados de separatismo. Apesar da diversidade do país, na constituição de Putin está escrito que os russos eslavos são o principal grupo do Estado. Há um “racismo terrível” no país e, sublinha-se, a “guerra imperialista é a continuação da política interna de perseguições de grupos étnicos e da política de extrema-direita”.
Então porque fala Putin em desnazificação? A ativista explica que eles usam a expressão “porque os nossos avôs e bisavôs combateram nazis na IIª Guerra Mundial e isso ainda é um acontecimento histórico muito importante” guardado na memória coletiva. Assim, “se disserem que estamos a combater nazis outra vez é algo que pode ser percebido e ganhar simpatia”. Com adesnazificação sendo um pretexto, sobra um imperialismo que deixa uma certeza: “mesmo que conquistasse a Ucrânia”, Putin continuaria “a construir o seu império imaginário” querendo expandi-lo para outros países.
A ativista russa termina a sua entrevista apresentando algumas coisas que podem ser feitas a partir do exterior, nomeadamente continuar a pressionar governos para que os seus governos deixem de apoiar a Rússia. E anuncia que as feministas russas se preparam para lançar “uma grande campanha contra comprar gás e petróleo russo porque esta é a base do regime e torna-o muito poderoso. Se se mantiver o dinheiro do gás e do petróleo, o regime continuará muito forte. E até com as sanções poderá manipular outros países e governos. E terá dinheiro para a guerra continuar”, termina.