Cabe-nos vigiar os direitos conquistados, porque o que não faltam por aí são resquícios trumpistas, sobretudo no que toca aos direitos de género.
Joana Mortágua, Jornal I, 5 de Maio, 2022
O Expresso conta(link is external) a história de “Jane Roe, pseudónimo pelo qual ficou conhecida, tinha apenas 21 anos quando descobriu que estava grávida pela terceira vez. Por não ter condições, lutou pelo direito a abortar no estado do Texas, onde a interrupção voluntária da gravidez era proibida. O caso arrastou-se na Justiça, numa luta contra o promotor Henry Wade, quando finalmente o Supremo Tribunal dos EUA reconheceu o direito constitucional de abortar. A decisão chegou tarde para a jovem que foi obrigada a dar a filha para adoção, mas fez a diferença na vida de muitas mulheres”. E conclui, de forma assustadora, que “meio século depois, tudo pode estar prestes a mudar”.
Esta semana, o jornal norte-americano “Politico” avança que o mesmo Tribunal se prepara para anular uma das decisões mais importantes da história da luta feminista dos EUA, remetendo as mulheres norte-americanas para a situação em que estavam antes de 1973. Caso o Supremo Tribunal avance, caberá a cada estado decidir se proíbe ou permite a realização de abortos legais no seu território. São pelo menos 22 estados onde a queda de Roe vs Wade resultará na proibição do aborto.
O receio é naturalmente o de obrigar milhões de mulheres a uma existência já quase sem memória, de abortos ilegais e clandestinos. Uma existência diminuída pela violação da sua saúde sexual e reprodutiva e do seu direito à escolha. Todas essas consequências não são desconhecidas de tantas personalidades que, dentro e fora da Casa Branca, declararam a possível decisão como um “ato abominável" desde logo a Presidente da Câmara dos representantes Nancy Pelosy, o presidente Joe Biden, a deputada Alexandria Ocasio-Cortez e o senador e ex-Candidato Bernie Sanders.
Mas o medo é também que um retrocesso civilizacional desta dimensão traga outras ondas de choque. O Supremo Tribunal carrega a marca do mandato do ex-Presidente de extrema direita Donald Trump, que em cinco anos nomeou três juízes conservadores, solidificando a maioria conservadora. Já noutras ocasiões, o Supremo deixou claro que estava preparado para alterar ou mesmo derrubar a legalização do aborto, o que levanta legítimas suspeitas sobre a possiblidade de o trumpismo pós-Trump vir a atacar também outras liberdades e direitos civis.
Acontece que nunca será apenas nos EUA que uma decisão desta natureza terá as suas repercussões. Além da solidariedade internacional com as mulheres norte-americanas, cabe-nos vigiar os direitos conquistados, porque o que não faltam por aí são resquícios trumpistas, sobretudo no que toca aos direitos de género.
Isso ficou à vista nas reações que vários representantes políticos tiveram no próprio momento da notícia. Refiro-me em particular ao membro do Conselho Nacional da Iniciativa Liberal e deputado municipal do Porto, Mário Amorim Lopes, responsável pela seguinte afirmação : ”na prática terá pouco efeito, porque a concorrência entre estados fará com que a mulher possa sempre fazer o aborto num estado em que esteja legalizado”.
Não quero dissecar o disparate de fazer dos direitos fundamentais uma questão de concorrência, uma espécie de “dumping social” de direitos humanos. Fica a repulsa pelas declarações de alguém que não sabe o que significou “na prática” o argumento “não faz mal, vão a Espanha”. Mas não se enganem, esse alguém é conservador. Digamos que, “na prática”, os ventos reacionários que sopram dos EUA fizeram um rasgão na capa liberal da Iniciativa que por cá dá pelo mesmo nome.
Artigo publicado no jornal “I” a 5 de maio de 2022
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