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Sem justiça, sem paz. O debate sobre protestos pacíficos

Este grito se originou alguns no início dos 90, durante protestos contra o assassinato de Michael Griffith por uma multidão branca racista em Howard Beach, Queens.

18 de julho de 2020

Asad Haider, Viewpoint Magazine, 4 de junho de 2020

As rebeliões de 1992 em Los Angeles apresentaram ao mundo um grito slogan: "sem justiça, sem paz". Este grito se originou alguns anos antes, possivelmente durante protestos contra o assassinato de Michael Griffith por uma multidão branca racista em Howard Beach, Queens, em Nova York, e foi repetido desde então em todas manifestações contra a violência policial.

Esse slogan popular, no entanto, entra em conflito com as vozes de autodenominados “líderes” e “representantes” que insistem que os protestos devem permanecer "pacíficos". Outros manifestantes se referem a eles como "polícia da paz", apelido que revela o conflito tensão existente.

A recente fala de George W. Bush, por exemplo, também estabelece uma perspectiva sobre justiça e paz, cujo objetivo seria? reconciliar os dois. Ele diz que "a justiça duradoura só virá por meios pacíficos", acrescentando que "saques não são libertação e sim destruição e nunca o progresso". Segundo Bush, que lançou a chamada Guerra ao Terror, “também sabemos que a paz duradoura em nossas comunidades exige uma justiça verdadeiramente igualitária. O estado de direito depende, em última análise, da justiça e legitimidade do sistema jurídico. E alcançar a justiça para todos é dever de todos.”

Esses usos diferentes e incompatíveis dos termos "justiça" e "paz" sugerem que eles próprios são contraditórios e se dividem em significados diferentes.

Martin Luther King, que hoje é frequentemente visto como autoridade moral na luta antirracista, era um pensador político da paz e da justiça. É importante revisitar suas falas hoje, que entendiam que "a revolta é a linguagem dos que não são ouvidos”, já que ele é visto como um dos principais defensores da necessidade de não-violência e um crítico compreensivo das rebeliões urbanas da década de 1960.

No entanto, havia algo muito mais profundo e mais subversivo no pensamento de King sobre rebeliões, que deveríamos considerar antes de prosseguir para as categorias de justiça e paz. Apesar de como ele é interpretado hoje, as críticas de King às rebeliões surgiram de uma perspectiva revolucionária - ou seja, na sua opinião, elas não eram suficientemente revolucionárias. Esse é o único ponto de vista a partir do qual podemos interpretar sua análise de manifestações e avaliar sua validade contemporânea.

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Em seus comentários sobre as manifestações de meados da década de 1960, King deixou de lado considerações morais para priorizar as estratégicas. No nível moral, ele insistiu que era necessário acusar a estrutura do poder branco antes de fazer qualquer crítica ao protesto. "Os tumultos são causados por moderados brancos, gentis e tímidos, que estão mais preocupados com ordem do que com justiça", disse ele a um grupo de corretores de imóveis negros em São Francisco em 1967. Eles também foram causados "por um governo nacional mais preocupado em vencer a guerra no Vietnã do que a guerra contra a pobreza aqui em casa.”

Em um discurso em 1967, na Conferência de Liderança Cristã do Sul (em inglês, Southern Christian Leadership Conference, SCLC), "A Crise nas Cidades da América", ele disse que foram "os formuladores de políticas da sociedade branca" que "causaram a escuridão; eles criaram discriminação; eles criaram favelas; eles perpetuam o desemprego, a ignorância e a pobreza.” Sua conclusão foi inequívoca: “digamos corajosamente que, se as violações totais da lei feitas por homens brancos ao longo dos anos fossem calculadas e comparadas com a violação de alguns dias de distúrbios, o criminoso seria o homem branco."

Afastando-se daqueles que, atualmente gostariam de limitar o significado das revoltas a uma resposta a incidentes isolados de discriminação policial, King listou várias causas subjacentes dos protestos: reação dos brancos, desemprego, difusão da discriminação, guerra e condições empobrecidas da vida urbana.

Citando as altas taxas de desemprego entre os negros nas cidades, especialmente entre os juventude negra, King levanta uma questão que devemos recordar, agora que enfrentamos nossa própria montanha de reivindicações sobre desemprego: “não é por acaso que os principais atores de todos os levantes foram os jovens. Com a maior parte de suas vidas ainda por viver, pode-se esperar que o bater de portas em seus rostos induza raiva e rebelião. ”

Compreendendo a conexão entre desemprego e "raiva e rebelião", King se recusou a se envolver com as críticas dos especialistas contemporâneos sobre a destruição de propriedades. Embora ele não endossasse os momentos em que os manifestantes quebraram as vitrines e saquearam as lojas, ele também fez questão de distinguir a destruição de propriedades da violência contra as pessoas:

A grande maioria que participou ativamente foi notavelmente determinante para evitar danos às pessoas, exalando sua raiva ao se apropriar ou destruir propriedades. Existe um propósito irônico nessa escolha; Para atacar uma sociedade que parece valorizar a propriedade acima das pessoas, as piores feridas a serem infligidas são as de propriedade.

Então, o pensamento de King sobre os protestos sempre partia da estrutura fundamental da sociedade. Mas sua próxima pergunta foi no nível de estratégia e organização, para abordar a situação do movimento antirracista, enquanto tentava mudar seu foco para o Norte urbanizado, onde as rebeliões estavam se proliferando. Isso exigiu que o movimento adaptasse as táticas de que dependia até aquele momento. "A não-violência deve ser adaptada às condições e ao humor urbano", disse King. "O protesto não-violento deve agora amadurecer para um novo nível." A situação era drasticamente diferente do que fora no Sul:

A ação não-violenta no Sul foi eficaz porque qualquer forma de movimento social dos negros perturba o status quo. Quando os negros apenas marcharam pelas ruas do Sul, era uma rebelião. Nas comunidades urbanas, as marchas são menos inquietantes porque não são consideradas rebeliões e, em segundo lugar, porque a turbulência normal das cidades as absorve como um drama meramente transitório, que é comum na vida da cidade.

No Norte, então, seria necessário levar a desobediência civil a um nível superior:

Para elevar o protesto a um nível apropriado para as cidades e investi-lo em qualidades agressivas, mas não-violentas, é necessário adotar a desobediência civil. Deslocar o funcionamento de uma cidade sem destruí-la pode ser mais eficaz do que um tumulto, porque pode ser mais duradouro, custoso para a sociedade, mas não destrutivo. Além disso, é mais difícil para o governo reprimi-lo impondo através da força. A desobediência civil em massa pode usar a raiva como uma força construtiva e criativa. É inútil dizer aos negros que eles não deveriam ficar furiosos quando deveriam estar.

Essa "desobediência civil em massa", ele destacou em seus comentários em um retiro organizado pela SCLC em 1968, teria que ser mais do que "uma declaração para a sociedade em geral"; teria que constituir "uma força que interrompe seu funcionamento em algum ponto-chave". Foi a partir da perspectiva estratégica de organizar uma força que poderia interromper o funcionamento da sociedade, então, King fez sua crítica aos protestos violentos: “A limitação dos protestos, além de questões morais, é que eles não podem vencer ... Portanto, os protestos não são revolucionários.”

O que seria revolucionário seria uma forma de desobediência civil em massa adaptada às condições do Norte, e isso não poderia ser limitado a marchas legais e ordenadas, nem a reformas na estrutura social existente. "Nós da SCLC devemos elaborar programas para levar os movimentos de mudança social da fase inicial, e agora inadequada, de protestos para um estágio de resistência maciça, ativa e não violenta aos males do sistema moderno", disse King no encontro do SCLC. "Nossa economia deve se tornar mais centrada na pessoa do que na propriedade e no lucro". Para conseguir isso, disse ele, "precisamos formular um programa e modelar as novas táticas que não contam com a boa vontade do governo, mas servem para obrigar as autoridades relutantes a ceder às ordens da justiça".

A análise de protestos violentos de King estava em um nível muito maior de nuances e sutilezas do que a maioria das que ouvimos na mídia contemporânea. Se sua avaliação estratégica estava correta é uma questão à parte, que pode ser debatida. Mas cabe aos que atualmente criticam os levantes fornecer outra resposta às perguntas estratégicas de King, propor outro plano para a ruptura da sociedade comparável à estratégia de desobediência civil em massa. É improvável que vejamos muitas dessas propostas, porque é mais provável que aqueles que criticam os levantes esperem evitar perturbações sociais, como deixam claro as críticas de King aos moderados brancos.

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Tendo enfatizado o caráter estratégico da perspectiva de King, vamos considerar como ele nos obriga a repensar as categorias de justiça e paz. O primeiro e mais direto aspecto da “justiça” é a justiça criminal, e alegar que “não há justiça” é uma crítica à aplicação inconsistente do que deveria ser um ideal consistente, isto é, expõe a aplicação inconsistente do processo punitivo e do Estado carcerário, que se recusa a punir certos assassinatos, especialmente o assassinato de negros pela polícia. Se toda essa frase significa "sem justiça", seria totalmente consistente com um apelo ao que Bush chama de "justiça e legitimidade do sistema legal".

Mas, para King, justiça significava algo mais do que isso, e os manifestantes que clamam "não há justiça" nas rebeliões também significam algo mais. Uma das declarações mais radicais e abrangentes dessa visão ocorreu na comemoração do centésimo aniversário de W.E.B. Du Bois em 1968, onde King observou que “o Dr. Du Bois’ tem como maior virtude sua empatia comprometida com todos os oprimidos e sua divina insatisfação com todas as formas de injustiça.” Essa insatisfação estava no centro da ideia de justiça:

Hoje ainda somos desafiados a ficar insatisfeitos. Fiquemos insatisfeitos até que todo homem possa ter necessidades alimentares e materiais para seu corpo, cultura e educação para sua mente, liberdade e dignidade humana para seu espírito. Vamos ficar insatisfeitos até que favelas infestadas de ratos e cheias de vermes sejam coisa de um passado sombrio e toda família tenha uma moradia decente. Vamos ficar insatisfeitos até que os estômagos vazios do Mississippi sejam preenchidos e as indústrias ociosas dos Apalaches sejam revitalizadas. Fiquemos insatisfeitos até que fraternidade não seja mais uma palavra sem sentido no final de uma oração, mas a primeira ordem de trabalhos em todas as agendas legislativas. Fiquemos insatisfeitos até que nosso irmão do Terceiro Mundo - Ásia, África e América Latina - não seja mais vítima da exploração imperialista, mas será elevado da longa noite de pobreza, analfabetismo e doenças. Vamos ficar insatisfeitos até que essa elegia cósmica pendente seja transformada em um salmo criativo de paz e "a justiça rolará como as águas de uma corrente poderosa".

King nunca deixou de citar esta passagem de Amós 5:24, observando em sua famosa “Carta da Cadeia de Birmingham” de 1963 que Amós era “um extremista da justiça”. A justiça tem certas características que vão além da primeira concepção de justiça, que se limita a apontar inconsistências. Em vez disso, a justiça é a forma persistente de "insatisfação divina com todas as formas de injustiça" e, portanto, é uma inconsistência com a injustiça. Essa insatisfação é completa, referindo-se não apenas ao caso específico ou à demanda imediata, mas à situação global e total de injustiça gerada pela ordem injusta da sociedade. Critica a injustiça do ponto de vista de uma sociedade justa, que ainda não existe e é visível apenas nas lutas dos oprimidos para vencer a injustiça.

Na "Carta", King também identificou duas formas de paz, em sua resposta ao "branco moderado", que ele caracterizou como "a grande pedra de tropeço do negro em sua caminhada em direção à liberdade". O branco moderado "é mais dedicado à ‘ordem’ do que à justiça" e "prefere uma paz negativa que é a ausência de tensão a uma paz positiva que é a presença da justiça".

Essa "ausência de tensão" pode ser entendida como a paz que pertence ao par de "paz e segurança", que, desde Thomas Hobbes, representou na filosofia política a necessidade do poder do Estado. "Paz e segurança" significa polícia. Nesse sentido, King escreveu: “sempre que os primeiros cristãos entravam em uma cidade, as pessoas no poder ficavam perturbadas e imediatamente procuravam condená-los por serem 'perturbadores da paz' e 'agitadores externos'”. O Movimento dos Direitos Civis nunca desapareceu, pois hoje os manifestantes são continuamente difamados pela mídia como "agitadores externos". A rejeição de King à noção de "agitador externo" na "Carta" deve agora ser mais amplamente conhecida e se baseia no caráter universal e persistente de sua insatisfação com a injustiça:

Além disso, estou ciente da inter-relação de todas as comunidades e estados. Não posso ficar ocioso em Atlanta e não me preocupar com o que acontece em Birmingham. A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar. Somos apanhados em uma rede inescapável de mutualidade, amarrada em uma única peça de roupa do destino. Qualquer coisa que afeta um diretamente, afeta todos indiretamente. Nunca mais podemos nos dar ao luxo de conviver com a idéia estreita e provinciana de “agitador externo”. Quem mora nos Estados Unidos nunca pode ser considerado um estranho em nenhum lugar dentro de seus fronteiras.

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Vamos voltar à "paz positiva" de King, que é a paz definida pela "presença da justiça". Quando King falou dessa paz positiva, ele também estava falando de um "distúrbio da paz": a justiça suspende o estado de "paz e segurança".

 

Certamente é verdade que King acreditava que esse distúrbio da paz deveria ser "não-violento". No entanto, ao enfatizar seu caráter pacífico, ele novamente teve que argumentar contra os moderados brancos, porque eles acusaram que, ao violar a lei, o próprio Movimento dos Direitos Civis estava provocando a reação violenta da polícia e, portanto, era responsável por isso. Esta é precisamente a acusação repetida hoje para criticar atos de destruição e saques de propriedades como provocações de violência policial, responsabilizando os manifestantes pela reação violenta da polícia. King rejeitou inequivocamente essa lógica:

Em sua declaração, você afirma que nossas ações, embora pacíficas, devem ser condenadas porque precipitam a violência. Mas isso é uma afirmação lógica? Não é como condenar um homem assaltado porque sua posse de dinheiro precipitou o ato maligno de assalto? Não é como condenar Sócrates porque seu firme compromisso com a verdade e suas investigações filosóficas precipitaram o ato pela população equivocada em que o fizeram beber cicuta? Não é como condenar Jesus porque sua consciência única de Deus e nunca cessar a devoção à vontade de Deus precipitaram o cruel ato da crucificação?

No entanto, o protesto não-violento previsto por King não foi visto pelos "brancos moderados" como "pacífico", e o Estado também não o viu dessa maneira. Como vimos, após as rebeliões urbanas que se seguiram ao Movimento dos Direitos Civis, King acreditava que o único caminho a seguir era se engajar em uma escala maior de desobediência civil em massa. King permaneceu comprometido com a ação direta em massa por princípio, mesmo quando seus conselheiros, como Bayard Rustin, insistiram em mudar a política e criticaram King publicamente. Como parte da Campanha dos Pobres e da campanha contra a Guerra do Vietnã, King queria interromper o tráfego em Washington, DC.

 

Como David Garrow relata em Bearing the Cross, que a Casa Branca de Lyndon B. Johnson não viu isso como uma tática "pacífica". Um memorando interno de Larry Temple, conselheiro da Casa Branca ao presidente, comparou King às figuras “violentas” do Poder Negro: “Permitimos que Stokely Carmichaels, Rap Browns e Martin Luther Kings se camuflassem em uma aura de respeitabilidade a que não têm direito.” A tática da desobediência civil foi explicitamente criminalizada; o branco moderado não acreditava na existência de desobediência civil e a classificou junto com a violência como criminalidade:

Quando Martin Luther King fala sobre violar a lei, obstruindo o fluxo de tráfego em Washington ou interrompendo as operações deste governo, ele está falando sobre desobediência criminal ... "Desobediência civil" é um nome impróprio. Não existe tal coisa ... À medida que se aproxima o tempo das atividades do Dr. King em abril, espero que o Presidente desmascare publicamente esse tipo de conduta pelo que realmente é.

Não é tão simples, então, isolar concepções unitárias de paz e justiça, e as relações entre elas. Para King, a não-violência era antes de tudo uma tática de luta política, mas também era um princípio moral. No entanto, temos que entender a distinção analítica entre esses dois níveis diferentes de não-violência. De fato, é possível que a não-violência possa ser adotada como uma tática, mesmo que a pessoa não esteja moralmente comprometida com a não-violência. De fato, podemos ver um reconhecimento dessa possibilidade nos discursos de Malcolm X, que rejeitou a paz como um princípio moral nesse sentido:

Não há nada em nosso livro, o Corão, que nos ensine a sofrer em paz. Nossa religião nos ensina a ser inteligentes. Seja pacífico, seja cortês, obedeça a lei, respeite a todos; mas se alguém colocar a mão em você, envie-o para o cemitério. Essa é uma boa religião. Na verdade, essa é a religião dos velhos tempos ... Deveríamos ser pacíficos, cumpridores da lei - mas chegou a hora do negro americano lutar em legítima defesa sempre e onde quer que esteja sendo atacado de forma injusta e ilegal.

Em outras palavras, Malcolm X apontou que havia um imperativo moral de autodefesa, que superava o imperativo moral de ser pacífico. Ele argumentou com a mesma veemência que a revolução era um processo inerentemente violento: "Historicamente, simplesmente não se tem uma revolução pacífica. Revoluções são sangrentas, revoluções são violentas, revoluções causam derramamento de sangue e a morte segue seus caminhos.” No entanto, ele concebeu que era possível que uma revolução sem derramamento de sangue pudesse ocorrer nos Estados Unidos, se os negros tivessem o direito de votar e pudessem usar seu sufrágio para mudar a estrutura política, permitindo-lhes ganhar o controle da terra que ele via como a base de toda revolução. Uma estratégia revolucionária não-violenta, portanto, era estrategicamente possível, mesmo que a não-violência não fosse moralmente exigida. Porém, se a escala de mudança que Malcolm X desejasse alcançar através de sufrágios eleitorais não fosse possível, a escolha entre "a cédula ou a bala" seria decidida em favor da última.

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Como Hawa Allan apontou recentemente em um poderoso e histórico artigo, a Lei da Insurreição, profundamente imbricada na história do racismo nos Estados Unidos, foi invocada para usar a força militar para reprimir os distúrbios que ocorreram após o assassinato de King. Ao longo da complicada história da lei, fica claro que a decisão legal sobre se uma forma de agitação constitui uma insurreição está nas mãos do Estado soberano. Ao decidir que um dado exemplo de agitação civil é uma ameaça à ordem jurídica existente, o soberano leva tanto a agitação quanto sua repressão à uma zona de ilegalidade e violência.

Toda desobediência civil, argumentou King, desde a "Carta", era uma violação deliberada de leis injustas e, portanto, constituía uma suspensão da ordem legal. Em seu discurso "Crise" no ano anterior ao seu assassinato, King abordou diretamente o tema da insurreição. Ele disse sobre as rebeliões urbanas:

Os levantes não podem ser considerados uma insurreição, porque as insurreições são organizadas e podem se sustentar por mais de alguns dias. As rebeliões são alimentadas por emoções amargas espontâneas e, portanto, desaparecem rapidamente.

Se isso é verdade para os levantes de hoje é mais uma questão estratégica e organizacional, e não moral. Um julgamento moral sobre a destruição de propriedades não é relevante para a discussão das táticas mais apropriadas; e mesmo o imperativo moral da não-violência deve ser avaliado criticamente à luz do imperativo moral da autodefesa. Quais táticas são apropriadas para as rebeliões de hoje só podem ser determinadas por uma análise organizacional e estratégica nos moldes propostos por King, e não de acordo com o julgamento moral que ele subordinou a essa análise. De fato, com as notícias de que Los Angeles está considerando cortes no financiamento do departamento de polícia, os membros do conselho da cidade de Minneapolis considerando abertamente a dissolução da força policial e o toque de recolher sendo levantado em várias cidades, há boas razões para acreditar que os protestos atuais são estrategicamente eficazes.

 

"Sem justiça, sem paz", do ponto de vista de King, significa que não há paz positiva sem justiça. Portanto, no contexto da injustiça, não pode haver paz negativa, no sentido de que deve haver tensão, deve haver um “distúrbio da paz” para se ter a presença da justiça. Hoje, quando os manifestantes gritam "sem justiça, sem paz", devemos entender isso como um princípio político que assume primazia sobre a concepção abstrata de "protesto pacífico". Nenhum protesto é inequivocamente pacífico, pois se for orientado estrategicamente e organizacionalmente para a transformação da sociedade, constituirá necessariamente um distúrbio da paz. A perturbação da paz continuará enquanto houver injustiça; então “sem justiça, sem paz” é um slogan que representa a busca intransigente da justiça, contra todas as forças de contenção exercidas pelo Estado, contra as vozes dos moderados brancos que culpariam os manifestantes pela violência da polícia e contra todos aqueles que não conseguem entender a mensagem duradoura de King, de que uma política de superação da injustiça é uma política de mudança revolucionária.

 

Como Trump ameaça invocar a Lei da Insurreição para reprimir os protestos em andamento, devemos revisitar o pensamento estratégico e organizacional de King e desenvolver o slogan "sem justiça, sem paz" em direção a uma estratégia de insurreição constantemente reafirmada.

Asad Haider é editor da Viewpoint e autor de Mistaken Identity: Anti-Racism and the Struggle Against White Supremacy (Verso, Spring 2018).