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Último livro de Eric Toussaint: capitulação para adultos

Michael Roberts analisa o último livro de Eric Toussaint sobre a negociação da dívida grega pelo Syriza, mostrando que havia alternativas para o país

18 de setembro de 2020

Michael Roberts, Economia e complexidade, 4 de setembro de 2020

Durante o bloqueio pandêmico, pude ler uma série de novos livros de economia, alguns marxistas, mas a maioria deles não. Parece que muitos economistas importantes publicaram novidades nos A Bolsa Ou a Vidaúltimos dois meses. Nas próximas semanas, farei post sobre alguns deles.

Começarei com Sellouts in the Room de Eric Toussaint. Originalmente publicado em março último, em francês (mas também em grego) sob o título Capitulation entre Adultes, o livro estará disponível em inglês antes do final de 2020. Toussaint rememora os eventos da crise da dívida grega quando a Troika (formada pela Comissão Europeia, o BCE e o FMI) tentaram impor um programa drástico de austeridade ao povo grego. Em troca, destinariam fundos de “resgate” para cobrir as dívidas existentes devidas pelos bancos e pelo governo grego a credores estrangeiros. Eis que o crédito para a Grécia havia secado nos mercados.

No início de 2015, o povo grego elegeu o partido de esquerda Syriza para que assumisse o poder. O Syriza prometeu resistir às medidas de austeridade. O novo primeiro-ministro, Alexis Tsipras, nomeou o já conhecido economista esquerdista Yanis Varoufakis como ministro das Finanças para negociar um acordo com a Troika. Como sabemos, Varoufakis, depois de empossado, não conseguiu convencer a Troika e os líderes da UE a abandonar as exigências de austeridade. Tsipras convocou, então, um referendo para que o povo grego decidisse sobre a aceitação ou não das exigências da Troika. Apesar de uma campanha massiva da imprensa capitalista e de ameaças terríveis da Troika de que o BCE iria estrangular a economia e os bancos gregos, o voto do povo grego para rejeitar o plano da Troika chegou a 60%. Mas imediatamente após a votação, Tsipras cedeu à Troika, passando a concordar com as suas demandas.

Varoufakis renunciou ao cargo de ministro das Finanças e, mais tarde, escreveu um relato de suas negociações com a Troika, ao qual deu o nome de Adults in the Room. Éric Toussaint também estava na Grécia na mesma época. Ele estava coordenando o trabalho de um comitê de auditoria da dívida, o qual fora criado pelo presidente do Parlamento Helênico, em 2015. A finalidade era analisar a natureza da dívida que os gregos deviam aos bancos europeus, fundos de hedge e outros governos. “Vivi quase três meses em Atenas, entre fevereiro e julho de 2015, trabalhando como coordenador científico da auditoria da dívida da Grécia; por isso, estive em contato direto com vários membros do governo Tsipras”. Toussaint escreveu, agora, uma visão alternativa desses eventos em relação àquela fornecida por Varoufakis. Assim, fez uma uma crítica devastadora do governo do Syriza e das estratégias e táticas de Varoufakis durante 2015.

É importante mostrar o que aconteceu? Toussaint considera que sim, porque há lições importantes a serem aprendidas com a crise da dívida grega. A opinião comum agora é que o Syriza não tinha alternativa a não ser se submeter à Troika, pois, em caso contrário, os bancos gregos teriam entrado em colapso, a economia teria caído em um abismo e a Grécia teria sido expulsa da União Europeia. Por exemplo, Paul Mason, radialista e escritor de esquerda britânico, escreveu, em 2017, que “continuava acreditando que Tsipras estava certo em ceder diante do ultimato da UE e que Varoufakis deveria ser considerado culpado pela maneira como participou do “jogo”, isto é, como construiu a estratégia de negociação”

Toussaint nega a narrativa de que os gregos estavam diante de uma situação TINA (em português, “não há alternativa”). Argumentando que havia outra estratégia que o Syriza poderia ter seguido. Em particular, Toussaint destaca que Varoufakis não quis reconhecer ou adotar essa alternativa como ministro das Finanças. Na visão de Toussaint, Varoufakis partiu da premissa de que tinha de persuadir a Troika a agir como “adulto” e, por isso, tentou convencê-los a chegar a um compromisso razoável. Desde o início, Varoufakis fez contrapropostas extremamente fracas, marginais, às medidas de austeridade propostas pela Troika: “Varoufakis tranquilizou os seus adversários que o governo grego não solicitaria uma redução do estoque da dívida; ele nunca questionou a legitimidade ou legalidade da dívida cujo pagamento estava sendo exigido da Grécia”. Ele nunca afirmou o direito e a determinação do governo grego de realizar uma auditoria das dívidas da Grécia – é o que diz Toussaint.

Varoufakis não apenas disse que o governo que representava não questionaria as privatizações realizadas desde 2010, mas também que permitiria a possibilidade de novas privatizações. De fato, Varoufakis disse repetidamente aos líderes europeus que 70% das medidas exigidas no “memorando de entendimento” apresentado pela Troika eram aceitáveis. Enquanto Varoufakis discutia com tais “adultos na sala”, o governo do Syriza continuou a pagar vários bilhões de euros em dívidas entre fevereiro e 30 de junho de 2015, enquanto que a Troika, nesse mesmo período, não disponibilizou um único euro. Os cofres públicos continuaram sendo esvaziados, principalmente para o benefício do FMI.

Varoufakis, assim como o círculo interno em torno de Tsipras, no momento do acordo com a Troika, no final de fevereiro de 2015, para estender o segundo “memorando de entendimento”, nunca mostrou a menor determinação para que agiriam caso os credores se recusassem a fazer concessões. E este último deu todas as evidências de desprezo pelo governo da Grécia.

Mais importante, diz Toussaint, os ministros do governo de Syriza não se abalaram para sair e auscultar o povo grego, para falar em comícios em que a população grega comparecia em peso. Eles não viajaram pelo país para se encontrar e conversar com os eleitores e para explicar o que estava acontecendo durante as negociações ou sobre as medidas que o governo queria tomar para combater a crise humanitária e retomar o crescimento da economia do país. Eles falharam totalmente em apelar por apoio aos trabalhadores da Europa e de outros lugares. Em vez disso, Varoufakis e os outros ministros gregos envolvidos na condução do processo da discussão optaram pela “diplomacia secreta”, aquela fica fechada dentro de salas. Isto incentivou a Troika a “persistir no uso das piores formas de chantagem”.

O referendo de 5 de julho de 2015, vale lembrar, foi o ponto culminante dessas negociações. Claramente, Tsipras esperava que o povo grego se curvasse à pressão da mídia, que cedesse diante da ameaça de desastre econômico e da expulsão da União Europeias. Enfim, que aceitasse as demandas da Troika. Mas eles não fizeram. Toussaint diz que os resultados do referendo foram uma oportunidade perfeita para mobilizar o povo grego, para rejeitar a chantagem da Troika e para recusar seus ultimatos. Eles podiam responder à Troika suspendendo o pagamento e a colocando como pendentes de uma auditoria. O governo deveria ter anunciado a nacionalização dos bancos e implementado controles de capital para interromper a fuga de capitais; enfim, deveria ter assumido o controle do sistema de pagamentos.

Eis o que Toussaint aponta: “Quando uma coalizão ou um partido de esquerda assume o governo, ele não assume o poder real. O poder econômico (que provém da propriedade e do controle de grupos financeiros e industriais, dos principais meios de comunicação privados, do varejo de massa etc.) permanece nas mãos da classe capitalista, o,1% mais rico da população. Essa classe capitalista controla o estado, os tribunais e a polícia, os ministérios da economia e finanças, o banco central, os principais órgãos de decisão.”

Ora, tudo isso foi ignorado ou negado pelo governo do Syriza, incluindo o seu espetaculoso ministro das Finanças. Eles partiram da premissa de que os representantes do capital na Troika poderiam ser persuadidos a ser razoáveis, a agir como adultos. A luta de classe foi omitida. Como diz Toussaint: “Na realidade, uma das principais opções estratégicas do governo Syriza – aquela que os levou ao fracasso – foi evitar constantemente o confronto com a classe capitalista grega. Não foi apenas a ausência de esforço no sentido de buscar mobilização popular – eis que a burguesia grega havia aderido amplamente às políticas neoliberais da EU –, mas que o próprio governo adotou abertamente políticas de conciliação de classes”.

Toussaint oferece uma estratégia alternativa em seu livro. O governo Syriza “deveria ter decidido seguir o caminho de desconsiderar os tratados europeus e se recusar a se submeter dos ditames dos credores. Ao mesmo tempo, deveriam ter tomado a ofensiva contra os capitalistas gregos, obrigando-os a pagar impostos e multas, especialmente nos setores de transporte marítimo, finanças, mídia e varejo de massa. Também era importante fazer com que a Igreja Ortodoxa, o principal proprietário de terras do país, pagasse impostos. Como meio de reforçar essas políticas, o governo deveria ter incentivado o desenvolvimento de processos de auto-organização em projetos coletivos existentes em vários domínios, por exemplo, os dispensários de saúde autogerenciados para lidar com a crise social e humanitária ou as associações que trabalham para alimentar a população das pessoas mais vulneráveis ​​“.

Isso poria em questão a adesão da Grécia à União Europeia. Até o momento do referendo, nenhum partido defendia a saída da UE como solução para a crise a não ser o partido comunista. A grande maioria dos gregos não queria ficar fora da União Europeia. Após a capitulação do Syriza, a liderança do partido se dividiu. Aqueles que se opunham à capitulação (com exceção de Varoufakis) aderiram ao Grexit, ou seja, passaram a sustentar a saída como a principal proposta de solução política. Nas eleições subsequentes, essas facções não conseguiram avançar no parlamento, de tal modo que o governo Tsipras manteve-se no poder.

Em seu livro, Toussaint afirma que o governo do Syriza deveria ter optado por acionar o artigo 50 da Constituição da UE com a finalidade de abandoná-la. Este artigo é aquele que o governo do Reino Unido usou posteriormente para sair, após o referendo de 2016. Toussaint calcula que o uso desse instrumento daria à Grécia dois anos para discutir a pendência com a UE, ao mesmo tempo em que permita recusar o pagamento das dívidas. Tenho, porém, dúvidas se esta teria sido uma boa tática.

Como salienta Eric Toussaint, nenhum estado membro da UE pode ser posto para fora. Na verdade, havia de qualquer modo poucas sanções que a UE poderia impor a um governo grego, além do bloqueio do crédito do BCE. Ora, isto era algo que eles já estavam fazendo de alguma maneira. Ao optar pelo artigo 50, o Syriza teria dito ao povo grego que o governo pretendia deixar a UE voluntariamente (algo que a maioria dos gregos não queria). Esta era também uma forma de dar aos líderes da UE um modo fácil de se livrar da Grécia, algo que, como Varoufakis aponta em sua narrativa, o ministro das finanças alemão Wolfgang Schauble estava interessado em fazer.

Em meus escritos sobre a crise grega, argumentei que o governo do Syriza deveria ter se recusado a pagar a dívida, optando por assumir os bancos e as grandes empresas gregas. Deveria ter mobilizado o povo para ocupar os locais de trabalho, introduzindo assim o controle dos trabalhadores. Deveria ter bloqueado a movimentação de fundos pelos ricos e pelas empresas. Ademais, poderia ter apelado ao movimento trabalhista na Europa para que atuasse contra as políticas de seus governos. Que esses governos expulsassem a Grécia; o importante era não lhes dar a arma constitucional para fazê-lo.

A ênfase principal do livro de Toussaint está no papel de Varoufakis; mas não por causa de qualquer animosidade pessoal. Mas, sim, porque esse “marxista errático” – é assim que ele se chama a si mesmo – estava no centro dos eventos e passou a escrever best-sellers sobre o que havia acontecido. Varoufakis, depois, formou um amplo partido político pan-europeu, o DIEM 25, tendo sido reeleito para o parlamento grego nas recentes eleições de 2019, nas quais o partido conservador retomou o poder.

Por que Varoufakis, como ministro das Finanças, adotou desde o início a estratégia de tentar convencer os líderes da Troika a serem razoáveis, em vez de mobilizar o povo grego para uma luta contra as demandas da Troika? A resposta, penso eu, está na visão de Varuofakis sobre as possibilidades do socialismo. Antes de ser nomeado ministro das Finanças por Tsipras, ele tinha sido apenas um acadêmico – não era membro efetivo do Syriza.

Naquela época, ele escreveu num artigo: “veja, não há afinal ambiente para políticas socialistas radicais. Em vez disso, é dever histórico da esquerda, neste momento específico, estabilizar o capitalismo; salvar o capitalismo europeu de si mesmo e dos manipuladores insanos cujas políticas levam inevitavelmente à crise na zona do euro”. Junto com o acadêmico social-democrata Stuart Holland e seu colega e amigo pós-keynesiano James Galbraith, havia escrito o que chamou de Proposta Modesta para Resolver a Crise do Euro. Era uma proposta que – ora, Varoufakis não deixou de dizer que se orgulhava disso – “não tinha qualquer cheiro de marxismo”.

Esse ‘marxista errático’ enxergou como sua tarefa na condição de ministro das finanças da Grécia “salvar o capitalismo europeu de si mesmo” para “minimizar as perdas humanas desnecessárias diante da crise; isto é, as incontáveis vidas cujas perspectivas serão ainda mais esmagadas, sem qualquer benefício para as futuras gerações de europeus”. Aparentemente, para Varoufakis, o socialismo não é capaz disso porque “simplesmente não estamos ainda prontos para fechar o abismo que um capitalismo europeu em colapso abre para que surja um sistema socialista que funcione”. Por ‘nós’, ele se refere às pessoas que trabalham, mas, na prática, ele quis dizer a si mesmo.

Varoufakis foi mais longe. Veja bem, “uma análise marxista do capitalismo europeu e da condição atual da esquerda nos obriga a trabalhar na direção de uma coalizão ampla, mesmo com direitistas, cujo objetivo deve ser a resolução da crise da zona do euro, assim como a estabilização da União Europeia… Ironicamente, mesmo aqueles de nós que detestam a zona do euro têm uma obrigação moral de salvá-la!” Assim, ele fez campanha pela sua “proposta modesta para a Europa” junto aos “jornalistas da Bloomberg e do New York Times, membros conservadores do parlamento europeu, financiadores preocupados com a situação da Europa”.

Em Sellouts in the Room, Eric Toussaint expõe com desdém essa abordagem equivocada desse “marxista errático”. É uma leitura dolorosa de várias maneiras, pois Toussaint, capítulo por capítulo, relata o triste avançar de Varoufakis nas sendas do erro – ou mesmo a falta de qualquer avanço. Em uma entrevista recente, perguntaram a Varoufakis “o que ele teria feito de diferente com as informações que tinha na época? Assim é que ele respondeu: “eu acho que deveria ter sido muito menos conciliador com a Troika. Eu deveria ter sido muito mais difícil. Eu não deveria ter buscado um acordo provisório. Eu deveria ter dado a eles um ultimato: “uma reestruturação da dívida ou estaremos fora do euro hoje”.

Infelizmente, a análise retrospectiva nunca gera muito benefício, exceto para evitar os mesmos erros quando uma outra oportunidade venha a surgir. O livro de Toussaint é um guia nesse sentido. Enquanto isso, o povo grego enfrenta agora mais uma rodada de austeridade e de depressão com a crise do coronavírus. Ela se sobrepõe aos terríveis anos anteriores e posteriores à capitulação, em 2015. A previsão do FMI para 2020 diz que a renda nacional da Grécia deve voltar pelo menos ao nível de 25 anos atrás!