Depois da eclosão da pandemia de Covid-19, ficaram gritantes as estreitas relações entre ecossistemas e biodiversidade com a possibilidade da emergência de patógenos de elevado potencial pandêmico. O Sars-Cov-2, coronavírus causador da Covid-19, tem seu transbordamento de espécies silvestres para seres humanos a partir de ecossistemas modificados pela ação humana e por alterações na sua biodiversidade [1], [2]. Mas a importância da biodiversidade não se deve exclusivamente à emergência de patógenos e a pandemias.
A 15ª reunião da Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica-CDB (COP15), realizada em Kunming, na China, em dois momentos complementares, teve a primeira rodada de negociações encerrada em 15 de outubro de 2021. Ela será retomada e concluída em abril-maio de 2022.
A biodiversidade é responsável por garantir serviços ecossistêmicos e funções que suportam todas as formas de vida na Terra, como por exemplo, a produção de alimentos, a ciclagem de nutrientes, ar saudável, água potável. Esses serviços sustentam nossa vida, nossa saúde e bem-estar, além de serem fundamentais para o crescimento econômico. Portanto, sua preservação e uso sustentável se fazem imprescindíveis à nossa sobrevivência, mas também como um comportamento ético de respeito com todos os seres vivos, e componentes abióticos, com o quais compartilhamos um único planeta, uma única natureza, uma só saúde.
Os principais fatores que atuam diretamente na perda da biodiversidade são o uso não sustentável ou alterações da terra e do mar, a superexploração da natureza, as mudanças climáticas a poluição e a invasão/introdução de espécies exóticas invasoras.
Em artigos recentemente publicados neste mesmo blog [3], [4], já tratávamos da influência das mudanças climáticas e da biodiversidade sobre a saúde humana e planetária, assim como a importância de tê-los como objeto da saúde global e da diplomacia da saúde.
Por tudo isso, é imprescindível conferir extrema atenção às negociações internacionais quanto a um conjunto de temas aparentemente externos à saúde, tais como a biodiversidade e o clima, incorporando-as, com muita convicção, nos estudos sobre saúde global e diplomacia da saúde. Pois o sucesso ou o fracasso das negociações internacionais sobre biodiversidade e clima impactará profundamente a saúde humana hoje e no futuro.
A COP15 e a Declaração de Kunming
A 15ª reunião da Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica-CDB (COP15), maior encontro da ONU sobre biodiversidade em uma década, tem a tarefa de negociar esforços globais para restaurar e proteger a variedade de vida na Terra, por meio da elaboração de uma estrutura de biodiversidade global pós-2020 e identificação de novas metas de proteção até 2030.
Realizada em Kunming, província de Yunnan, sudoeste da China, em dois momentos complementares, teve a primeira rodada de negociações encerrada em 15 de outubro de 2021, e será concluída em abril-maio de 2022.
O principal resultado do Segmento de Alto Nível da primeira parte da COP15, foi a adoção da Declaração de Kunming [5], em 13 de outubro, firmada por mais de uma centena de países. A Declaração foi intitulada Civilização ecológica: Construindo um futuro compartilhado para toda a vida na Terra.
O texto recorda e se situa no contexto da Década de Ação das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, da Década das Nações Unidas para Restauração de Ecossistemas e da Década das Nações Unidas para Ciência do Oceano, assim como, da Declaração de Cancún sobre a Integração da Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade para o Bem-Estar, da Declaração de Sharm el Sheikh sobre o Investimento na Biodiversidade para as Pessoas e o Planeta, e da Cúpula das Nações Unidas sobre Biodiversidade de setembro de 2020, cujo tema, recordemos, foi Ação Urgente sobre Biodiversidade para o Desenvolvimento Sustentável.
Apesar de ser um documento político inicial e ainda sem metas claras, a Declaração de Kunming incorpora o saber científico e alerta para a necessidade de ações integradas em todos os setores, dentre eles a saúde, encorajando a adoção de abordagens de Saúde Única.
Preâmbulo da Declaração
Na sua parte preambular, a Declaração reconhece a íntima relação entre as diversas crises planetárias, que incluem perda de biodiversidade, mudanças climáticas, degradação da terra e desertificação, degradação dos oceanos e poluição, e os crescentes riscos para a saúde humana e segurança alimentar, que, em seu conjunto, diz a Declaração, representam ameaças à sobrevivência da sociedade, da cultura, da prosperidade e do planeta.
Reconhece também que “os principais fatores diretos da perda de biodiversidade são as mudanças no uso da terra/mar, a superexploração, as mudanças climáticas, a poluição e as espécies exóticas invasoras”, mas não faz qualquer menção ao que consideramos a causa das causas, ou seja, o modelo de desenvolvimento e de produção e consumo que marcam a etapa atual do capitalismo global.
Reconhece que os povos indígenas e as comunidades locais contribuem para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade, por meio da aplicação de conhecimentos, inovações e práticas tradicionais e por meio do manejo da biodiversidade em suas terras e territórios tradicionais.
A Declaração menciona a necessidade de ação urgente e integrada de todos os setores da economia e de todos os segmentos da sociedade, visando uma mudança transformadora por meio da coerência das políticas em todos os níveis de governo e da realização de sinergias com convenções globais relevantes e organizações multilaterais.
Observa que é necessária “a combinação de medidas que visem deter e reverter a perda de biodiversidade”, o que incluiria mudanças no uso da terra e do mar, conservação e restauração de ecossistemas, mitigação das mudanças climáticas, redução da poluição, controle de espécies exóticas invasoras e prevenção da exploração ambiental excessiva, bem como ações para transformar os sistemas econômico-financeiros e garantir a produção e o consumo sustentáveis e reduzir o desperdício; afirma que nenhuma dessas medidas isoladamente, nem em combinações parciais, é suficiente, e que a eficácia de cada medida é potencializada pela outra.
A nosso ver, esse parágrafo preambular é paradoxalmente avançado pelo conjunto de ideias, mas problemático pelo uso de vocábulos ambíguos ou que expressam ações insuficientes, como é o caso mitigação, excessiva, redução etc. Esses termos deverão ser transformados em métricas-alvo para que haja avanços significativos. Por enquanto, a única métrica existente nesta Declaração é que os países devem preservar 30% das suas terras e oceanos até 2030, uma meta conhecida como '30 por 30 ', que foi reconhecida pela sessão da COP15 de Kunming.
Compromissos
Na sua porção declaratória, o texto assume compromissos quanto a 17 pontos, entre os quais:
- assegurar o desenvolvimento e a implementação de um quadro de biodiversidade global eficaz pós-2020; preparar Plano de Implementação pós-2020 e Plano de Ação de Capacitação para o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança; promover a integração da conservação e uso sustentável da biodiversidade nas tomadas de decisões dos governos nacionais;
- desenvolver Estratégias Nacionais de Biodiversidade e Planos de Ação; melhorar a estrutura legal ambiental global e fortalecer e aplicar leis ambientais favoráveis à biodiversidade em nível nacional; garantir a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos, por meio da CDB, do Protocolo de Nagoia e outros acordos;
- medidas para o desenvolvimento, avaliação, regulamentação, gestão e transferência de biotecnologias relevantes, inclusive de organismos geneticamente modificados; reduzir os efeitos negativos das atividades humanas nos oceanos; garantir que as políticas, programas e planos de recuperação pós-pandemia contribuam para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade;
- reformar as estruturas de incentivos, eliminando ou reformando subsídios e outros incentivos que sejam prejudiciais à biodiversidade; garantir apoio financeiro, tecnológico e de capacitação aos países em desenvolvimento, necessário para estruturar a biodiversidade global pós-2020;
- participação plena e efetiva de povos indígenas e comunidades locais, mulheres, jovens, sociedade civil, governos e autoridades locais, academia, setores empresariais e financeiros e outras partes interessadas;
- comunicação, informação e educação sobre biodiversidade ao público; colaboração e coordenação de ações com acordos ambientais multilaterais em andamento.
Como se pode observar, uma agenda ampla e ambiciosa, que repete alguns mantras já ecoados no último decênio, mas que são muito importantes de serem reafirmados no contexto atual de aprofundamento da perda de biodiversidade em todo o planeta. No entanto, os comprometimentos não se refletiram em metas específicas para conter extinções em massa de espécies. O próprio ministro do Meio Ambiente da China, Huang Runqiu, país que preside a COP15, disse aos delegados da conferência que “a declaração é um documento de vontade política, não um acordo internacional vinculante”.
Reações globais
A reação à Declaração foi positiva na maior parte dos países e grupos de países do mundo. Inúmeras agências das Nações Unidas manifestaram-se com propostas de adesões desde suas particulares áreas de atuação. A Presidência do Conselho da União Europeia saudou positivamente a Declaração de Kunming, logo após sua divulgação. O G7 já havia manifestado posição favorável à maioria das aspirações e compromissos da COP15, nos itens 42 e 43 do seu Carbis Bay G7 Summit Communiqué [6], mas não se manifestou especificamente sobre a Declaração. O G20 vai se reunir neste final de outubro e espera-se uma manifestação de apoio à Declaração. Os Estados Unidos da América, que até hoje não ratificou a CDB, manteve seu estridente silêncio habitual.
A World Wide Fund for Nature (WWF) saudou a combinação de medidas presentes na Declaração, que inclui tanto ações de conservação, como ações para abordar a produção e o consumo insustentáveis, pois ambos são imprescindíveis para assegurar um mundo favorável à natureza nesta década. Por outro lado, ressaltou que há um extenso caminho para uma abordagem governamental implementada por todas as partes da CDB, mas a participação de ministros de economia e finanças, agricultura, desenvolvimento e meio ambiente demonstra que os governos estão começando a reconhecer que a biodiversidade deve ser tema prioritário em todas as áreas.
De acordo com a Agência Reuters, a Declaração de Kunming pede uma "ação urgente e integrada", que reflita as considerações sobre a biodiversidade em todos os setores da economia global. Mas questões cruciais como o financiamento da conservação em países mais pobres e o compromisso com cadeias de abastecimento mais amigáveis com a biodiversidade foram deixadas para serem discutidas na segunda etapa da COP15, em abril de 2022.
Para o Greenpeace [7], o texto não contém os avanços suficientes e esperados na maioria dos temas polêmicos, apesar dos tímidos intentos. O comunicado da ONG acrescenta que, embora sejam importantes metas ambiciosas, como proteger pelo menos 30% das áreas terrestres e marinhas até 2030, são imprescindíveis compromissos governamentais concretos com estratégias de implementação e meios reais para atingi-las. Ademais, as metas devem reconhecer os direitos dos povos indígenas e das comunidades locais, e seu papel fundamental na preservação da natureza e da biodiversidade.
Muitos dos compromissos descritos na Declaração de Kunming são basicamente uma continuação do Plano Estratégico para a Biodiversidade 2011-2020 e as Metas de Biodiversidade de Aichi, que também incluíram compromissos para reduzir os incentivos a atividades que ameaçam a biodiversidade, integração da biodiversidade com outras políticas governamentais, e aumento da resiliência contra as mudanças climáticas. Um dos grandes desafios será o financiamento dessas medidas, em um momento de crise econômica causada pela Covid-19. Antes mesmo da pandemia, a disponibilidade de recursos financeiros públicos e privados internacionais para a agenda da biodiversidade (US$ 80-90 bilhões/ano) foi infimamente menor que os subsídios à atividades econômicas que ameaçam os ecossistemas e a diversidade biológica (US$ 500 bilhões/ano), como a agricultura, a pesca, e a exploração e o uso de combustíveis fósseis.
Com a perda de espécies atingindo seu ritmo mais rápido em 10 milhões de anos, o avanço das mudanças climáticas e a previsão de novas epidemias, a Declaração de Kunming traz uma nova esperança. A Declaração pode ter parecido apressada, mas as negociações sobre propostas mais concretas ocorrerão em 2022, culminando na segunda parte da COP15 em abril-maio. Espera-se que o debate suscitado pela Declaração de Kunming ecoe nos próximos fóruns globais a que se destina, como o High-Level Political Forum do Ecosoc 2022 sobre a Agenda 2030, e a própria Assembleia Geral das Nações Unidas de 2022. A sociedade civil global e nacional tem papel fundamental na cobrança de que as promessas virem, finalmente, ações concretas na proteção e restauração da biodiversidade. O planeta não pode mais esperar!
Notas
[1] Goldfarb, B. Edge of Existence: As climate change and habitat loss push wildlife to the brink, the time to protect biodiversity is now. The Nature Conservancy August 27, 2021. Disponível aqui.
[2] Keesing F et a.l Impacts of biodiversity on the emergence and transmission of infectious diseases. Nature 468.7324: 647-652, 2010. Disponível aqui.
[3] Buss PM; Magalhães DP. As estreitas relações entre a pandemia e a biodiversidade. Centro de Estudos Estratégicos blog [Internet], 18 jan. 2021. Disponível aqui.
[4] Magalhães, DP; Buss, PM. O bem-estar humano está relacionado à proteção da biodiversidade e ao clima. Centro de Estudos Estratégicos blog [Internet], 01 jul. 2021. Disponível aqui.
[5] Disponível aqui.
[6] Disponível aqui. Ver itens 42 e 43, página 17.
[7] Disponível aqui.