Na disputa feroz por um lugar ao sol entre o seleto clube das multinacionais da indústria farmacêutica ocidental, a Europa tropeça em negociações pouco transparentes e no favorecimento escancarado de distribuição das vacinas para o mercado anglo-americano, que ameaçam a imunidade coletiva de seus cidadãos dentro dos prazos que havia programado. Enquanto uma nova direção em Washington busca recuperar o tempo perdido com Trump, há, como afirmou Francisco Louça, uma "fulgurante degradação da liderança europeia".
Elizabeth Carvalho, TV Globo e GloboNews, 10 de abril de 2021
“Será preciso tirar lições do momento que estamos atravessando, e nos interrogarmos sobre o modelo de desenvolvimento em que o mundo mergulhou nas últimas décadas. A pandemia nos evidencia que a saúde pública e nosso sistema de previdência, sem discriminar renda, percurso de vida ou profissão, não podem ser contabilizados como custos, mas como bens preciosos (...) O que revela essa pandemia é que há bens e serviços que precisam ser colocados fora das leis do mercado. Precisamos retomar o controle para construir uma França e uma Europa que segurem firmemente seu destino nas mãos”. -- Emmanuel Macron, em discurso à nação francesa em 18 de março de 2020, ao anunciar as primeiras medidas tomadas para conter a pandemia da Covid-19.
O caminho da salvação parecia estar pavimentado em 21 de dezembro passado, quando a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, celebrou a liberação da germano-americana Pfizer/BioNtech para começar a imunização dos europeus. Em uma semana, mantendo o espírito de “unidade” numa só “frente de combate”, os 27 países da União Europeia começariam enfim a vacinar seus habitantes.
Bruxelas virava a página de um semestre de exaustivas negociações com seis multinacionais farmacêuticas gigantes, sobre as quais foram derramados 2,15 bilhões de euros para a disputa pelas patentes das vacinas anticovid ocidentais, capazes de conter o avanço das similares russa e chinesa, as primeiras a serem registradas. O ano fatídico de 2020 terminava com a reserva garantida de 2,275 bilhões de doses -- quase o triplo do necessário para vacinar a população inteira do continente europeu -- e a meta ambiciosa de imunização coletiva de 450 milhões de cidadãos até o verão de 2021.
Mas em janeiro começaram as derrapagens. A Pfizer/BioNtech alegou problemas na escala de produção para reduzir o ritmo de entrega dos primeiros lotes na Europa, enquanto mantinha a todo vapor a distribuição das reservadas aos Estados Unidos. Nenhuma chance de acesso à made in America Moderna (160 milhões de doses), último acordo assinado, em fins de novembro: a vacina só seria distribuída na Europa depois que os americanos estivessem devidamente imunizados. A AstraZeneca, na qual os europeus tinham apostado alto por ser a mais pan-europeia das vacinas, adentrou fevereiro reduzindo em 75% suas entregas aos países da União, enquanto mantinha estável sua distribuição no Reino Unido.
Sem poder contar com as demais contratadas -- a americana Johnson & Johnson prometia alguns lotes somente a partir de fins de abril, a alemã Curevac não estaria pronta para antes do final de 2021 e a franco-britânica Sanofi/GSK sequer havia decolado --, as primeiras levas de europeus inscritos no processo de vacinação logo sentiram as consequências do escancarado favorecimento anglo-americano.
Neste mês de abril, a média de vacinados nos diferentes países da Europa patina, segundo estatísticas oficiais, entre 12% e 13% de suas populações (sem que o número efetivo de imunizados com duas doses estejam discriminados) enquanto o Reino Unido se aproxima dos 50%, seguido pelos Estados Unidos, com 40%. A Organização Mundial de Saúde mandou um recado: era “inaceitável” que nações desenvolvidas, alheias aos apelos de uma partilha igualitária e humanitária do combate à pandemia no mundo, não fossem capazes de apressar o ritmo da imunização de suas próprias populações contra a Covid.
Sob a chuva de críticas que se espalhou de Lisboa a Bucareste, a Comissão Europeia não questionou a enorme fatia do bolo que coube à “America First”, conhecido lema de Donald Trump que vem sendo praticado por seu sucessor Joe Biden. Mas subiu o tom com o Reino Unido, acusando Londres de estar retendo doses que deveriam ser destinadas à União da qual os britânicos acabavam de se desligar. Von der Leyen chegou a ameaçar acionar o artigo 16 do acordo que permitiu à fronteira da Irlanda do Norte ser considerada como fora da União Europeia, último capítulo das espinhosas negociações para o sucesso britânico do Brexit.
Puro exercício de retórica. Na medida em que começam a vir a público os acordos secretamente negociados entre União Europeia e o seleto clube das indústrias farmacêuticas ocidentais – a Big Pharma, tal como conhecido nos países do norte – emerge com mais visibilidade a mistura tóxica da disputa interestatal feroz com a pressão dos lobistas, o que torna os próprios países europeus vulneráveis e reféns da mesma superioridade e arrogância com que o mundo do Norte costuma tratar o mundo do Sul não europeu depois de séculos.
A Corporate Europe Observatory, associação que conseguiu fazer valer na Justiça o acesso a documentos sobre contratos negociados por Bruxelas sem nenhuma transparência e até então mantidos em segredo, calcula que a Big Pharma gasta por ano entre 15 e 17 milhões de euros nas mãos de 175 lobistas para pressionar as decisões da União Europeia. Os primeiros contratos que a associação conseguiu trazer a público, com várias partes propositadamente riscadas para não permitirem leitura, já evidenciavam a lógica da “socialização das perdas e privatização dos lucros” que prevalece nos acordos comerciais que regem o modelo de desenvolvimento questionado pelo presidente Macron em seu discurso de 18 de março passado, ao final um somatório de palavras bem-intencionadas, mas vazias, porque jamais efetivamente levadas ao pé da letra.
Foi justamente essa lógica que acabou permitindo, por exemplo, que, ao atraso das entregas sem claras punições previstas, se somasse o descompromisso dos produtores de vacinas com os efeitos colaterais que elas podem provocar. As vítimas de súbita alta de pressão arterial após a aplicação da Pfizer/BioNTech mereceram pouco atenção da mídia europeia e terminaram empurradas para debaixo do tapete na vertigem dos acontecimentos, mas os casos de embolia e trombose cerebral provocados pela AstraZeneca (até onde se sabe, 30 no Reino Unido, 31 na Alemanha e pelo menos duas mortes na França, que geraram processos na Justiça por homicídio involuntário) estimularam um pânico crescente entre europeus: na França, neste último final de semana, apenas 70 pessoas se candidataram a tomar a primeira dose das 600 disponíveis num centro de vacinação em Calais, norte do país. A má fama da AstraZeneca está levando os cidadãos franceses a deliberadamente perderem seu lugar na fila de espera nos centros de vacinação enquanto aguardam que produtos mais confiáveis sejam disponibilizados, apesar do parecer favorável da Agência Nacional de Medicamentos.
Primeiro contrato assinado com Bruxelas, a AstraZeneca tinha tudo para imprimir a marca made in Europe em sua vacina. O presidente da indústria farmacêutica é francês; a segunda maior filial da empresa fica na França; e Alemanha, Itália e Holanda abrigam fábricas que contribuem em maior ou menor grau para a produção. Tem a vantagem de ser a mais barata de todas, ainda que tenha custado aos cofres de Bruxelas 336 millhões de euros antecipados para pesquisa e desenvolvimento.
A AstraZeneca também foi favorecida com uma cereja no bolo: o preço da dose pode subir, se a pandemia não terminar até julho de 2021, ou seja, a reserva de 300 milhões de doses poderá custar um total de 870 milhões de euros – quase o dobro das previsões.
A ilusão de que vivemos num mundo globalizado sem fronteiras ruiu com a pandemia. Por trás da lógica das empresas que se unem e se dissolvem ao sabor dos ventos, fatiadas na escala de produção em diferentes países de acordo com os lucros que são capazes de operar, existe sempre um Estado disposto a pagar mais e reter um poder maior sobre os demais. A própria ex-secretária de saúde para a União Europeia, Anne Bucher, expôs publicamente a ferida aberta pela queda brutal dos investimentos públicos em pesquisa de vacinas na Europa entre 2002 a 2008: enquanto os Estados Unidos subiram os financiamentos de 13 para 42,2 milhões de euros, a média europeia caiu de 23,2 milhões para minguado 1,9 milhão. E o que dizer da penúria de máscaras no auge da primeira onda da epidemia no ano passado? A França não tinha sequer capacidade de produzi-las dentro de seu território.
A ideia de “quem paga mais tem mais” não ilustra apenas o favorecimento norte-americano e britânico no acesso às vacinas. O ano de 2020 ainda não havia acabado quando a mídia alemã vazou a informação de acordos bilaterais de Berlim por baixo do pano, para garantir uma “reserva extra” das vacinas Pfizer-BioNtech (30 milhões) e Curevac (20 milhões).
A presidente da Comissão Europeia se apressou em lembrar que os 27 países da União tinham todos acordado, “sob pena de punição jurídica”, que não seriam toleradas negociações paralelas. Os alemães explicaram que, contra 750 milhões de euros em financiamento de pesquisa que saíram dos cofres de seu Ministério de Educação e Pesquisa para vacinas nascidas nos laboratórios do país, um estoque maior havia sido combinado, para uso em caso de emergência. A comissão se retraiu, e não condenou explicitamente a iniciativa do Estado alemão.
Diante dessa competição desigual, é compreensível que vários países europeus do Leste, ainda saudosos dos laços com o antigo mundo soviético, tenham se desprendido das amarras de Bruxelas para recorrer à Rússia e à China na vacinação de seus cidadãos. A Hungria, que fechou acordos com a Sinopharm chinesa e a Sputnik V russa, já imunizou quase 23% da população. A Sérvia contabiliza 22%. O Fundo Soberano de Investimento Direto Russo divulgou neste 9 de abril adiantadas negociações de parceria para produção local da Sputnik V na Suíça, na Áustria, na Itália, na Espanha. E, quem diria, a própria Alemanha iniciou conversações com Moscou nesta mesma direção.
Seja como for, a equação não muda: o planeta precisa de 11 bilhões de doses para atingir a imunidade de grupo a nível global. Até o mês passado, estavam confirmadas encomendas de 8,6 bilhões de doses, das quais 6 bilhões se destinavam aos países ricos do norte. Contas feitas, sobra menos de um terço para os países empobrecidos, entre os quais o Brasil se situa e que representam 80% da população mundial.
Nada mais desonroso para uma Europa enfraquecida e atada a compromissos transatlânticos anacrônicos, pouco favoráveis a seus próprios interesses, do que praticar um “humanismo egoísta” e não aderir à ativação da “licença obrigatória” firmada nos acordos de Doha ainda nos anos 90, que permite liberar os direitos de propriedade intelectual em caso de crise sanitária mundial para que todos tenham acesso igualitário às vacinas. Na corrida contra o tempo, sobra pouco tempo para reverter a dolorosa previsão de Tedros Ghebreyesus, o diretor geral da Organização Mundial da Saúde, em seu esforço para salvar a humanidade de consequências trágicas e imprevisíveis:
- O mundo está à beira de um fracasso moral catastrófico, e o preço desse fracasso será pago com muitas vidas e meios de subsistência nos países mais pobres do mundo.
Elizabeth Carvalho é correspondente da GloboNews e da TV Globo em Paris.