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Bolsonaro e Paulo Guedes são um só governo. É preciso barrá-lo.

15 de novembro de 2019

Na terça-feira 5 deste mês, Bolsonaro e Paulo Guedes entregaram ao Congresso um pacote de medidas econômicas, dividido em quatro Propostas de Emendas Constitucionais (PECs), com as quais se propõem a “transformar o Estado brasileiro”. Na ressaca da vitória, do governo e do capital, em aprovarem a Reforma da Previdência, “Entreguedes” desfere um disparo de míssil contra os direitos universais e sociais contidos na Constituição de 1988.

Com ele, está inaugurada oficialmente uma nova fase na execução dos planos ultraneoliberais no Brasil, com o objetivo destruir de vez qualquer vestígio de direitos dos servidores, de autonomia dos municípios e estados e de possibilidade de planejamento econômico. Fica decretado, se aprovado o pacotão, o reinado absoluto do “equilíbrio fiscal”, em detrimento dos trabalhadores e do povo pobre. As PECs (festejadas também pelo presidente do Senado, David Alcolumbre) completam a obra destruidora daquela com que Temer congelou os gastos públicos por 20 anos. A obsessão dos governantes é garantir constitucionalmente o pagamento da dívida pública “sobre todas as coisas”.

O pacote mexe até no pacto federativo, ao propor a extinção de 1200 municípios da federação e desobrigar a União de avalizar as dívidas dos demais entes federativos. Uma das três PECs, a chamada “da emergência fiscal”, contém dez gatilhos (referentes a cortes e redução de direitos) a serem disparados quando os entes da Federação passarem de certo limite de endividamento. Caso aprovada, especialistas calculam que 13 estados mais Distrito Federal entram imediatamente nessa condição – em que há redução de salários de funcionários, cortes em carreiras inteiras, possibilidade de desrespeitar os gastos obrigatórios com saúde e educação. Entre as barbaridades pretendidas está a inclusão do pagamento dos aposentados e pensionistas dentro da conta dos “gastos sociais”.

O pacotão vai a fundo no reordenamento neoliberal do Estado brasileiro após o golpe parlamentar de 2016. Ao lado dos leilões do pré-sal, do início dos trâmites para a privatização da Eletrobrás e da MP da carteira verde amarela para jovens (que institui o trabalho temporário e precarizado), as novas PECs podem ser consideradas a fase final deste processo que pretende por fim a qualquer proteção social, na direção de um verdadeiro “estado zero” para a população.

Coerência de projeto nas provocações bolsonaristas

Uma semana antes do anúncio, o país foi pautado pelas suspeitas (ainda longe de estarem encerradas) sobre qual relação o clã Bolsonaro poderia ter com os assassinatos de Marielle e Anderson. Um forte desgaste já caía na conta do governo com a ameaça inaceitável, de parte de Eduardo Bolsonaro, de fazer voltar o AI-5 diante de uma “radicalização da esquerda”.

Os arroubos autoritários dos bolsonaros e da sua base de sustentação mais próxima geram maior indignação e possibilidades de uma unidade de ação muito ampla em torno da defesa da democracia, assim como da apuração sobre quem são os mandantes das execuções de Marielle e Anderson. Ainda assim, o entusiasmo do andar de cima, dos grandes grupos capitalistas e dos grandes meios de comunicação, com o pacotaço Bolsonaro-Guedes não mostra algum tipo de unidade em torno da agenda ultraliberal? Sem dúvida.

Mais do que isso: será que há uma contradição de projeto entre a tentação autoritária, antidemocrática, fascista, da extrema direita, de um lado, e o projeto Guedes de outro, como apontam alguns? De modo algum isto é uma contradição insolúvel para os setores neoliberais, tão sócios na defesa da democracia liberal quanto no esmagamento dos direitos dos pobres. De fato, o projeto neoliberal na etapa aberta pós-crise de 2008 (algo como um neoliberalismo 2.0) necessita do autoritarismo político para poder aplicar-se em toda a extensão pretendida. O “neo-neoliberalismo” é autoritário.

Os bolsonaros não são aloprados. Suas declarações não são incoerentes ou desprovidas de objetivos. Não foi por acaso que Eduardo resgatou a ideia de uma AI-5 em caso de “radicalização da esquerda”, dando como exemplo a situação atual do Chile – país que foi modelo e plano-piloto do neoliberalismo na América Latina, hoje sacudido por uma rebelião popular sem precedentes. O Chile de hoje (do ponto de vista da falta de direitos) pode ser o Brasil amanhã, caso sigamos sob a batuta de Guedes.

Não, não sabemos o tempo histórico necessário para amadurecer as condições de esgotamento da paciência do povo brasileiro com o discurso dos sacrifícios. Até onde trabalhadoras e povo pobre vão engolir a extrema precarização, o fim de qualquer acesso à proteção social, às tragédias socioambientais resultantes desse modelo capitalista ultrapredatório e sem limites para mais destruição.

Os bolsonaros e seus apoiadores ficam indóceis diante das incertezas sobre o êxito de sua sanha destruidora. Pois estamos há sete anos em estagnação econômica, sem perspectivas de retomada de fôlego e num cenário internacional que combina uma provável nova recessão com a multiplicação de levantes sociais. Ficam inquietos com o ressurgir das lutas sociais em nosso continente, seja pelas magníficas mobilizações de ruas (Chile, Equador, Haiti), seja pelas vitórias eleitorais antiliberais (Argentina, prefeituras colombianas) – novos elementos que podem ser barreiras à execução da cartilha liberal. Em algum momento, portanto, os interesses do autoritarismo político e do neoliberalismo poderão se encontrar, desnudando a hipocrisia dos muitos que hoje se indignam com os bolsonaros, mas apoiam suas medidas econômicas e clamam por ordem e repressão.

O Brasil que está surgindo sob a condução ultraneoliberal pós-golpe de 2016 é inóspito, com cheiro de queimadas, intolerante, inculto, violento, predador, machista, homofóbico e transfóbico, genocida do povo negro e das lideranças indígenas. Mas os levantes a nossa volta mostram que não há trevas autoritárias que durem para sempre e impeçam a revolta popular, que cedo ou tarde se manifesta.

Construir nossa muralha de resistência

O grande desafio atual é saber por onde dar passos para acumular forças para retomarmos a confiança na luta e a capacidade de mobilização. Não está escrito nas estrelas que é impossível derrotar Bolsonaro e barrar a sua agenda liberal. Ensaios e demonstrações de força popular já as vimos em poucos anos pós-golpe – a greve geral de 2017, as manifestações amplas de repúdio ao assassinato de Marielle e Anderson, o #Elenão e o Vira voto, todas em 2018, e este ano o 15M e 30M pelo orçamento da Educação. Hoje, vemos focos de resistência dispersos pelo Brasil: o povo nordestino que mergulha os braços no óleo para salvar a própria vida e o meio-ambiente, as milhares de estudantes secundaristas que foram às ruas defender a Amazônia e o clima, as comunidades que gritam basta ao genocídio em curso no Rio de Janeiro.

Mas, para se colocar a sério a possibilidade de mudar esse jogo, alterar em nosso favor a relação de forças, será preciso unificar todas essas lutas e insatisfações numa mesma frente única, capaz de colocar todas os atores e suas demandas num mesmo espaço de articulação e mobilização com o objetivo de derrotar Bolsonaro e a agenda liberal de Guedes. Precisamos unificar a Frente Povo Sem Medo, Brasil Popular, o Fórum das Centrais, os movimentos ambientalistas, coletivos de mulheres, negritude, LGBT, entidades estudantis e partidos… Uma frente por direitos e democracia, uma frente que privilegie o caminho das ruas, uma frente que entenda que a agenda autoritária e liberal são parte de um todo. Uma frente única para valer, sem imposições de pautas, sem hegemonismos autoritários ou lutas estéreis por datas de atos. Sem este passo número um, sem esta disposição de construir uma grande muralha unitária de resistência, a dispersão de energia nas lutas fragmentadas, com cada setor em seu canto ou em sua própria pauta, fica facilitada a tarefa destruidora de Bolsonaro-Guedes.

Precisamos construir as condições para que o Brasil de amanhã seja o Chile de hoje, para que uma nova página de esperança e mudança seja escrita em nosso país.