Chile está rumo a uma mudança constitucional. O processo, iniciado faz um ano nas ruas, e ratificado de forma contundente no último 25 de outubro, habilita a possibilidade de uma transformação do marco legal do neoliberalismo. Contudo, esse sopro expressa um desejo de mudança nas formas de vida. Conversamos com Rodrigo Ruiz, antropólogo e parte da equipe da Prefeitura de Valparaíso na estruturação do dossiê #ChileDespertó.
Rodrigo Ruiz, Tinta Limón, 14 de dezembro de 2020. Tradução de Antonio P de Souza, militante do PSOL-CE.
Rodrigo Ruiz é antropólogo e integrante da “Territorios en Red” (TER) e faz parte do gabinete político da prefeitura de Valparaíso. No começo dos anos 1990 foi um dos fundadores do Movimiento SurDA. Em 2012 fundou “El Desconcierto”, uma revista de referência para a esquerda chilena. Foi diretor, e nesse período coordenou um selo editorial lançado pela própria publicação. Em 2016 deixou o projeto. Anteriormente foi membro da direção nacional do Movimento Autonomista e parte da Convergência Social até 15 de novembro de 2019, quando apresentou sua renúncia - junto com vários militantes, dentre os quais se destaca o prefeito de Valparaíso, Jorge Sharp Fajardo - logo após a assinatura do Acordo pela Paz Social e a Nova Constituição: “É contrário na essência às demandas que as diferentes e diversas manifestações reivindicaram nas ruas”, dizia na carta de renúncia. No entanto, acredita que é preciso participar do processo constituinte e “garantir que a Constituição tenha o conteúdo mais radicalmente pós-neoliberal”.
Para Ruiz, a revolta expõe que no Chile a dinâmica institucional está debilitada. O movimento feminista é o que mais claramente põe em cena uma linguagem em tensão com a matriz neoliberal. Expressa uma força destituída contra essa forma neoliberal de conceber a vida. Estão dizendo - sustenta -: este é o momento para mudar profundamente as coisas porque estamos em risco como humanidade. “Provavelmente estamos assistindo ao prefácio das revoluções do século XXI”, assegura.
A impugnação total
O Chile é o país pioneiro na instalação do neoliberalismo no mundo. Se falou muito dos trinta anos, mas acredito que é interessante falar dos quarenta anos de neoliberalismo: dez anos metidos numa ditadura, no mínimo. É dizer, desde o giro que tivemos no fim dos anos 1970, na ditadura de Pinochet, até a instalação do modelo como é. Isso se expressa numa grande quantidade de políticas sociais, mas também no comportamento dos meios de comunicação de massa e na própria Constituição. Também a “gestão civil” do neoliberalismo desde 1990, com um processo de, digamos, aperfeiçoamento democrático no pós-ditadura. Tudo isso começa a estourar em 18 de outubro.
É muito difícil construir uma hipótese clara a respeito do que ocorre no Chile hoje. As manifestações são diversas, algumas muito disruptivas, e passam-se muitas coisas em paralelo. Mas é evidente que a dinâmica institucional está debilitada. Isso se expressa na parte política da mobilização, que vai e ocupa as praças, e na parte das condutas como o saque. Tudo isso contém um caráter político porque é parte de uma impugnação ao Estado e à forma institucional que instala o neoliberalismo no Chile. Mas claro, os saques carecem de uma dimensão fundamental na política que é a ausência de vinculação a um ideal, a um imaginário, a uma forma de organização. Sobretudo por não conter uma ruptura rumo a um futuro possível.
Aqui nós temos construído uma leitura que dá muita importância à noção de produção. Temos lido Marx a partir deste lugar. Também lemos Henri Lefebvre, que quando fala da produção do espaço sublinha que o lugar teórico desta já tem sua força em Hegel. Nessa linha, é muito interessante quando Judith Butler diz que a produção do gênero deve entender-se como parte da forma em que se produzem os próprios seres humanos nos marcos heteronormativos atuais. É deste lugar que pensamos a construção política: a partir da produção do território, da transformação dos territórios, da nova produção democrática socializada do território, de onde não são as forças tradicionalmente vinculadas ao capital que produzem mas sim as forças vinculadas à comunidade. Desse ponto de vista também há uma compreensão do neoliberalismo como um espaço produtivo: um regime de produção de um novo tipo de subjetividade. E quando digo subjetividade não me refiro apenas a modos de pensar, mas à existência dos sujeitos, formas materiais de construção do sujeito. Isso é o que está caindo, e o que está estourando em alguma medida.
Os estudantes e o “sem mais lucro”
Isso começou em 2006, com a “Revolução Pinguina” (mobilização estudantil secundarista de massas pelo direito à educação e contra as privatizações). Depois foi muito forte em 2011, 2012, quando se levantou uma consigna massiva: “sem mais lucro”, sobretudo no plano da educação. Uma consigna estrutural porque aponta à matriz teórica básica, elemental, do neoliberalismo. É dizer, a ideia de que as pessoas devem conceber-se como empresas individuais e que a vida é uma espécie de projeto de lucratividade individual do capital humano. Toda essa lógica no Chile está colocada de fundo, e dispõe de um dispositivo de legitimação brutal, tanto por parte do Estado como do mundo privado e suas instituições.
Todo o sistema educacional chileno está guiado por essa lógica, e há muito tempo. Por exemplo, os sistemas de medição da “qualidade da educação” estão vinculados à lógica do capital humano. É uma coisa que não existe, a esse nível, em nenhuma parte da América Latina. No Chile hoje é absolutamente inimaginável uma instituição como a Universidade de Buenos Aires (UBA), ou como a Universidade Autônoma do México (UNAM). Não se vai à UBA dizer que esta é uma melhor ou pior universidade em função de formar melhor ou pior capital humano. Seria impensável, mesmo com Macri. No Chile isso é o pão de cada dia. Isso repete inclusive gente de esquerda. A ideia da sociedade de oportunidades, a ideia de capital humano, está metida em um nível brutal de hegemonia.
Então, creio que há uma explosão dessa matriz neoliberal que tem sido hegemônica nos últimos 40 anos. É uma revolta que interroga e interpela a forma do Estado, que interpela a sua produção de subjetividade. As pessoas estão dizendo: “Não dá mais, não quero viver mais dessa forma nem quero pensar em mim mesmo dessa maneira”. Nesse ponto, o movimento feminista é o que mais claramente põe em cena uma linguagem de tensão com essa matriz; a verbaliza e articula de uma forma muito clara quando traz o problema da existência humana: da reprodução até o Estado. É muito potente, põe a lógica neoliberal em tensão a partir de uma cultura nova.
Revolta e processo constituinte
Nós pensamos que o processo constituinte próximo tem como base essa força de desconstituição do estabelecido que expressa com especial potência o movimento feminista. É uma força de destituição contra essa forma neoliberal de produzir a humanidade. Não é menos que isso; é uma revolução tão profunda como se lê. Provavelmente estamos assistindo ao prefácio das revoluções do século XXI. Não serão barbudos em Sierra Maestra, haverão outros formatos. Mas são revoluções no sentido de que porão em marcha uma potência de destituição que está focada no que há de mais profundo na construção da ordem atual, até os elementos mais estruturais. Por que as pessoas pegaram a estátua do conquistador, de Pedro de Valdivia, lhe arrancaram a cabeça e puseram nas mãos de um líder da resistência mapuche, de Caupolicán? As pessoas estão dizendo: “Cara, isso está errado desde que saímos”. Isso tem 500 anos de podridão. É uma mobilização que se atreveu a pensar, então, com essa profundidade histórica.
Aberto o processo constituinte, surge a pergunta: o que vamos fazer? Vamos construir uma nova forma de Estado como condição de totalização dessa mobilização, como forma de resolver a relação dessa mobilização com a totalidade social? Creio que isso ainda não seja possível. Isso se relaciona com o fato de que no Chile não há um líder. Ou seja, não há um Evo Morales, ou um Kirchner, ou um Fidel. E não há motivo para complicar isso, há motivo para escutá-lo. Creio que é muito interessante. Tenho grande simpatia pelos que acabo de mencionar, mas creio que as pessoas estão dizendo “Não vou resolver minha relação com a totalidade através de Fulanito como encarnação do Estado.” Então a lógica do populismo talvez deva ser revista.
Diferentemente da experiência argentina, aqui não há uma força como a que encarnou o kirchnerismo; ou seja, não há um peronismo capaz de conduzir uma mobilização no povo, nem a possibilidade de tentar resolver a situação com esse deslocamento do popular à totalidade através de uma experiência “populista”, para ter como chamá-la de algo. A política argentina evidentemente sabe, ou soube, como resolver uma crise política com uma mobilização de massas. A política chilena, não.
Mas sobretudo e mais importante, creio que deve-se entender a revolta num ciclo mais extenso e muito mais difícil de fechar ou capturar. Pensando um ciclo curto, talvez a elite político-empresarial pudesse apropriar-se do processo constituinte. De fato, nesse ponto foram vitoriosos: no lombo do povo conseguiram assinar o Acordo e desenhar o processo constituinte. Creio que devemos saber ler quando a elite consegue fazer seu trabalho e, por causa disso, conseguem instalar essa ideia, falsa a meu ver, de que a Convenção Constituinte é o mesmo que a Assembleia Constituinte.
Mas compreendamos ainda isso, o problema de fundo é que essa elite não tem nenhuma capacidade de processar as demandas mais profundas que estão instaladas nas ruas, que são que definitivamente determinarão a temporalidade real desse processo. Não tem capacidade sequer no seu nível mais elemental, o socioeconômico. As pessoas dizem massivamente, nitidamente, e há muitos anos: “Sem mais AFP”, sem mais essa falta de ar que são as Administradoras de Fundos de Pensão. Mas o capitalismo chileno não sabe como diabos funcionaria sem formas permanentes de acumulação originária do tipo das AFP. Por isso creio que o governo e a direita montaram essa defesa doutrinária diante da retirada de 10% das economias das pessoas nas AFP, ainda que fosse uma forma de injetar dinheiro na economia familiar em meio à crise.
Essa gigantesca massa de capital disponível para as grandes empresas financeiras, não é mais que o dinheiro dos trabalhadores e seus salários. Removam da economia chilena essa forma de obtenção de capital e entraria em crise uma série de coisas; entre elas, o mesmo sistema bancário. Outro dia ouvi alguém dizer: “Salvador Allende cunhou a ideia de que o salário do Chile era o cobre, mas agora o salário do Chile é a economia financeira”: certo, nossa economia é financeirizada há pouco tempo. A economia chilena, como muitas outras da América Latina, é extrativista. Mas a questão financeira é a que rege o seu funcionamento, e as pessoas têm sérios problemas com essa dinâmica.
Como resolver isso? Qual é o tipo de configuração da elite política que hoje poderia resolver isso? Não existe. Podemos chegar a redigir uma nova Constituição, mas meu temor é que não cheguemos a delinear os modos de superar uma ordem econômica como a que nos tem regido há tantos anos. Talvez haja outras temporalidades. A isso me refiro quando digo que há uma corrente subterrânea de longa duração que diz: “O neoliberalismo, tal como o conhecemos no Chile, se acabou, não funciona, nem vai funcionar bem daqui pra frente em nenhum momento mais”. Em certa medida, isso não é novo, a crise era e é o modo de existência do neoliberalismo. Mas agora parece que já não lhe interessa funcionar com a festa em paz. Ou já não tem como fazer outra coisa. Talvez Maurício Macri na Argentina tenha experimentado isso: que problema existe se depois trouxermos o FMI aqui, que ele nos meta uma injeção de moeda, tratem de salvar aqui, e depois se mandem para onde quer que estoure a crise? Assim funcionam as instituições financeiras de nível mundial. Bem, creio que a revolta nos põe diante da necessidade de resolver essas questões e nada menos. É assim que se tratam os níveis de profundidade com os quais deve trabalhar a Constituinte.
O desacato: Basta!
A chave é o que estão dizendo os de baixo. Os de baixo estão dizendo: “Basta! Isso já não dá mais”. O que ocorre quando milhares de egressos da universidade não podem pagar sua dívida com o sistema privatizado de financiamento da educação? O que vai ocorrer quando as pessoas disserem “não pago mais, meta meu nome na justiça, me jogue na cadeia, tanto faz, não vou pagar”? Começa a haver uma situação com esse nível de anomalia, de mal funcionamento do sistema. É um mistério o porquê de todos pagarmos nossas quotas anuais da dívida educacional quando todos sabemos que é uma grande injustiça. Mas as pagávamos.
Então, houve um momento em que alguém disse: “não pago mais, vá a merda, não pago mais e fim de papo!” E hoje dizemos: “não paguemos mais, não paguemos mais”. Ou nos dizem: “veja, vocês tem que sair da praça”. E a multidão responde: “não vou sair, não quero sair da praça, a praça é minha e não me vou, não me vou, não me vou”. E não se foram. Mas estão apontando para os meus olhos! Tem um menino com um olho a menos, dois, dez, cem, duzentos. E “não vou embora da praça!” Em suma, é impressionante a vontade popular que disse: “Não aceito mais que isso funcione como vem funcionando”, apesar de não saber muito mais que isso. Creio que aí estamos, não sabemos muito mais do que isso, mas o que havia não aceitamos. Em segundo lugar, não aceitamos que ninguém venha nos dizer como tem que ser as coisas. Essas duas coisas estão instaladas radicalmente na situação de hoje no Chile, e representam um tremendo desafio para nós que objetivamos a ação política.
Agora, que o Chile terá que ter um novo presidente, é um fato; precisam haver parlamentares, prefeitos; precisam haver constituintes. Não se trata de desconhecer uma dinâmica desse tipo, não vão desaparecer as instituições, nem é desejável que isso aconteça. Nós não somos anti-instituições; se trata, na verdade, de pensar que o Chile precisa entrar numa espécie de processo de reinstitucionalização. Pensamos que nela está a chave para avançar rumo a uma forma mais radicalizada de participação social. É dizer, uma democracia com real profundidade social.
As formas de participação política
Desde que chegamos ao governo local em Valparaíso, desde o primeiro dia, temos impulsionado um processo participativo. As três ou quatro grandes coisas relevantes que fez esta administração, o fez assim. E esse é um processo em nada simples, não é fácil pôr entre parênteses o poder político. Em 2014, para um livro que publicamos, entrevistamos Álvaro García Linera que disputava essa lógica de Estado e de como pensar um socialismo não estatista. Como recuperar o imaginário do socialismo, mas não a partir da centralidade do Estado? Uma centralidade que, ademais, nunca teve, a não ser a partir de algo que se inventou por necessidade prática. Um socialismo que tenha como chave a ação da comunidade organizada e transferência de poder a essa instância. Um Estado que se retraia em benefício dessa participação. Se pensamos na rede de serviços de saúde que articulamos a partir da prefeitura de Valparaíso, o que vemos é um serviço público não estatal, baseado em formas de participação profunda, é o que se pode dizer. Porque as pessoas participam, inclusive, da nomeação dos funcionários que serão contratados para trabalhar nesse lugar. Então não é uma ficção da participação, são tomadas decisões concretas.
Desse modo, no que diz respeito aos desafios do momento atual, não se trata de organizar ninguém. É dizer, não creio que tenhamos nem a habilidade, nem o conhecimento, nem a potestade, para poder organizar o outro. A primeira linha é um exemplo impressionante. É uma forma de organização que não vem de cima. Ninguém pode reclamar para si a condução ou autoria de determinada coisa. Não ocorre a um partido ou a uma força política X fazê-lo. Mas, seguramente, ali estão correndo rios subterrâneos de memórias históricas, de contos de avós, de aprendizados do movimento popular chileno por muitos anos. Tampouco, porém, estaria correto dizer o contrário: “bem, agora vamos assumir que é a vez das pessoas, e nós nos recolhamos”. Este “as pessoas” é um significante vazio, “as pessoas” não existem, “as pessoas” somos nós também. Agora, e com isso se joga na Frente Ampla eivados de esperteza, se diz “nós estivemos com as pessoas na rua”, “estamos fazendo panelaços junto as pessoas”. Não fode, panelamos todos. O problema é que a Frente Ampla deveria ser hoje um artefato político que radicalizasse uma lógica de participação, não de administração institucional desse sentimento.
Naturalmente, não é fácil encontrar os mecanismos para levar adiante formas de participação profunda. Mas o que existe, por exemplo, na Plaza de la Dignidad, é um grande parlamento que funcionou por vários meses no Chile. Ali as pessoas falavam, argumentavam de distintas formas, com canções e consignas. Se pode compreender uma média ao final do dia, ou da semana, sobre as ações que devem ser tomadas apenas escutando o que ali se passa. Não é necessário uma enquete, as pessoas o indicam de alguma maneira sempre. Não sei como em algum momento passamos todos os dias por todo lado nas sextas na Plaza de la Dignidad, perguntando “quem instituiu isso? quem imaginou?” Não tenho ideia, mas aí está, e funcionou. Existe uma lógica organizativa, que, no entanto, não se pode pensar que esteja coordenada no sentido conspirativo em que crê a imaginação do governo; essa imaginação meio aterrorizante de que há um poder obscuro por trás de tudo que ordena as ações através das redes sociais. Falso! Isso é não ter entendido nada. Aqui está se passando uma coisa que tem a ver, melhor dizendo, com uma ideia diferente de democracia da que nos impuseram depois da ditadura.
Devemos nos pôr desse lugar a avançar para um assunto muito relevante. Nos preocupam os déficits de condução que tem essa revolta. Esse é um problema real, que não é possível omitir em uma leitura romântica da mobilização. Da capacidade de construir uma direção política para o processo, que até hoje não se tem, é que vai depender a saída que teremos. É um problema da maior importância. Creio que só se pode resolver esse impasse se as distintas opções transformadores escutarmos o que está na rua e nos pusermos a seu serviço com mais humildade. Do contrário, a separação entre as distintas esquerdas e a mobilização pode se aprofundar, pode se prolongar, pode se agravar. Temos que ter em conta, sem esconder esse fato nem por um minuto, de que a mobilização não tem relação orgânica pré-constituída com nenhum setor político, nenhum.
A potência destituinte: de Allende ao 18
Temos que pensar a sério a magnitude da potência destituinte. O 18 de outubro abriu um ciclo longo. Nós sempre dissemos: “a explosão de outubro é uma abertura”. Mas dizer que é uma abertura poderia ser um lugar comum, algo óbvio. Algo menos óbvio é dizer que, no marco dessa explosão, não se vai produzir uma porta fechada. Ou seja, não há que se falar em um grande fechamento para um ciclo curto, porque aí nos equivocamos. Efetivamente, temos fechamentos parciais, como pode ser o Acordo pela Paz e a nova Constituição. Mas o fundamental é o processo que se abriu para o povo do Chile.
É interessante voltar a falar do povo, ou melhor, dos povos do Chile. Porque está o povo mapuche, e por outro lado, no “povo chileno” nem sempre estiveram realmente contadas as mulheres. Há muitos povos. Todos esses povos estão dizendo que querem avançar rumo a uma forma de vida diferente. Os que melhor expressam isso, sem dúvida, são os jovens. Em especial as mulheres, porque vivem uma situação mais profundamente desigual. Nelas se expressa uma espécie de condensação, de cristalização de um imaginário do futuro que tomamos como tarefa, dando conta de que, por exemplo, em cinquenta anos podemos tornar o planeta inabitável, da forma como as coisas estão. Estão mais conscientes dos problemas da socialização atual. Estão dizendo que esse é o momento para mudar profundamente as coisas porque estamos em risco enquanto humanidade. Os jovens vivem assim, ponto. E andam de bicicleta por isso, não porque seja mais legal. Andam de bicicleta também porque pensam no combustível fóssil.
No Chile, esse ciclo longo reinventa na nossa cara o 18 de outubro. Temos que ler o que ocorre dessa maneira. É um ciclo longo e profundo, que remonta a quando se instalou o modelo neoliberal no nosso país; ou melhor, remonta a derrota do outro grande momento de imaginação política que teve esse país, que foi o governo de Allende. É dizer, quando o Chile se atreve a pensar em um caminho ao socialismo que não existia no mundo. “A revolução com empanadas e vinho tinto”, uma imaginação em escala global. “Vamos inventar uma coisa nova, ponto.”
Vocês sabem que Che presenteou Allende - que viajou a Cuba nos primeiros dias da revolução - um dos primeiros exemplares do “A guerra de guerrilhas”, e na dedicatória pôs: “A Salvador Allende, que por outros meios trata de obter o mesmo resultado”. Parece-me tonto pensar que a distinção a que se referia ali era entre a luta armada e eleitoral. Melhor disse Che: “você e eu estamos pensando em como construir uma via latinoamericana distinta da soviética”. Sabe-se perfeitamente que Che tinha isso na cabeça. Allende também por certo, a sua maneira. Esse projeto foi derrotado. Quarenta anos de construção de classe, de levantes populares, foram destruídos em 1973. É a contrarrevolução histórica que instala o modelo neoliberal e destroça um nível de imaginação histórica que havia começado a construir-se nos anos 1920, quando entra em crise a dominação oligárquica no Chile. Bem, o que estamos vivendo hoje, de novo, é uma ruptura. Está colocada a possibilidade de ruptura com essa linha longa, que na América Latina nem é tão longa assim, que instituiu sua última fase no Chile com a derrota de ‘73. Estamos em um momento com a mesma profundidade histórica que teve a década de ‘20, ‘30, que é quando surge a esquerda chilena, se fundam o Partido Comunista e o Partido Socialista, ou aquele em que se constrói o modelo da Unidade Popular e o governo de Allende, com a ideia de socialismo e revolução com empanadas e vinho tinto. Está começando a amadurecer uma força histórica que tem essa profundidade. É uma crise da época; é uma possibilidade de abertura de outra época. No entanto, não há nada assegurado.
Da mesma forma, não venham me perturbar com o sentido histórico do Acordo de Paz, é de outra escala. Voltemos à Frente Amplio e ao tipo de responsabilidade histórica que lhe cabe. Acredito que ela deveria ter-se posto à frente deste processo, essa era sua responsabilidade histórica, ao invés de tentar dar desfechos menores. A Frente Amplio andava preocupada sobre como sairíamos da crise ao invés de acompanhar e ver como a crise se maturaria e se se dirigiria rumo a algum lugar. Como iria produzir então uma saída à crise por cima? O que é isso? A quem importa fazer isso? À classe dominante, como o é todas as vezes. Quando a Frente Amplio tenta fazer isso está pensando, muito erroneamente, como classe dominante. Não está pensando como povo. Esse é talvez o grande equívoco de sua participação no famoso Pacto.
Evidentemente, não é simples traduzir isso em ação política imediata. Temos que voltar a construir uma esquerda no Chile com pensamento estratégico. O grande problema da esquerda chilena, depois da derrota de ‘73, é que não conseguiu impulsionar um projeto com vocação estratégica - como o fizeram os comunistas, socialistas e anarquistas do começo do século XX. Um projeto estratégico que se coloque diante da história, que se coloque diante do capitalismo do século XXI e diga: “Bem, como faço isso?” Temos que voltar a processar essas ondas longas em função de como constituímos um projeto de luta e de uma nova sociedade. A situação está aberta a partir desse lugar. Para isso, as esquerdas precisam repensar-se e reconstruírem-se desde dentro.
Por outro lado, há um fechamento imediato, a conjuntura curta precisa ser fechada de alguma maneira. Seguramente, o desfecho da conjuntura vai ser o processo constituinte. Mas, por sua vez, isso abre um novo momento importante, que é um pouco mais longo, com suas discussões, com formas de organização específicas. Por exemplo, acho até divertido que se fale dos “independentes”, do lugar que ocupam os independentes no processo constitucional, como se os “independentes” não fôssemos quase todos, como se fosse uma espécie de nova minoria a qual precisamos reservar de forma paternalista uns espaços especiais.
Agora, o povo do Chile se chama “os independentes”, ou seja, todos os que não são eles, todos os que temos a desgraça de não ser da classe política. Bem, como nos organizamos? Devemos nos articular com esse mundo em condições que não escolhemos. Esse é o ginásio, não o desenhamos, não dispusemos das regras do jogo nem o tempo que dura, mas vamos jogá-lo e vamos tratar de ganhar o campeonato. O que isso significa, então? Que a constituinte que emerge desse processo será o mais próxima ao imaginário destituinte que está posto hoje em dia na mobilização. Ponto. Ou seja, que tenha o conteúdo mais radicalmente pós-neoliberal, se quisermos dizer de outra maneira.