A desaceleração econômica global causada pelo Covid-19 fez com que a pegada ecológica global, que mede as marcas deixadas pelo ser humano na natureza, tenha diminuído em quase 10%, em relação ao ano passado. Como consequência, o Dia da Sobrecarga da Terra será em 22 de agosto, ao passo que, em 2019, foi em 29 de julho. Nesse dia, a humanidade terá utilizado tudo o que a natureza pode repor em um ano inteiro.
Marta Antonelli, Alessandro Galli, Laetitia Mailhes e Mathis Wackernagel, Esglobal, 20 de agosto de 2020.
A redução da pegada ecológica foi inesperada, devido às medidas de contenção impostas pelos governos para frear a pandemia. Consequentemente, não se pode confundir com um movimento em direção à sustentabilidade. É uma variação que ocorreu devido a um desastre global, e não uma transformação cuidadosamente planejada. Agora, aponta-nos a direção possível. E enfatiza a necessidade urgente de agir o mais rapidamente possível para garantir um futuro em que todos possamos viver bem, dentro das possibilidades do nosso planeta.
Começando pelos alimentos. Cerca de metade da biocapacidade da Terra já está absorvida na produção de alimentos. Nossa forma de produzir, distribuir e consumir alimentos determina 70% da perda de água potável e 37% de todas as emissões de gases do efeito estufa.
A pandemia de Covid-19 evidenciou as fragilidades do sistema alimentar global. Isso levou ao fechamento de fronteiras e à interrupção das cadeias de abastecimento, exacerbando a desnutrição e a perda e desperdício de alimentos. Do campo ao aterro, passando pela mesa, é necessário fazer um drástico redesenho que nos permita abordar a sindemia global de mudança climática, desnutrição e obesidade.
O sistema alimentar atual consome muita energia. Em média, utilizamos 5,7 calorias de combustível fóssil para produzir cada caloria de produto lácteo e de carne, desconsiderando o cozimento. Com o pão e os cereais, usamos cerca de 1 caloria. Além disso, muitos cultivos e alimentos para a pecuária são transportados por longas distâncias, antes de chegarem ao consumidor, já que menos de um terço da população mundial atende a sua demanda com alimentos cultivados em um raio de 100 quilômetros.
A mecanização crescente do trabalho agrícola e a revolução verde permitiram que as reservas de alimentos se mantenham à altura das necessidades de uma população em crescimento, há seis décadas. Mas também colocaram em perigo os ecossistemas naturais, e isso afetou a produtividade. Frente a um ritmo anual de aumento da produtividade de 1,7%, entre 1961 e 2007, prevê-se que as produções dos principais cultivos básicos aumentem apenas 0,8% ao ano, no período 2007-2050. Ao mesmo tempo, o valor nutricional dos alimentos diminuiu, porque as calorias vazias passaram a ser os alimentos mais baratos e fáceis de conseguir, com o consequente aumento da obesidade e outras doenças não transmissíveis.
Os longos circuitos que constituem o sistema alimentar global estão repletos de vulnerabilidades. Por exemplo, o aumento do nível do mar e o aumento das temperaturas devido à mudança climática no Vietnã - o segundo maior exportador de arroz do mundo - levaram a várias temporadas de safras ruins, o que, por sua vez, provocou escassez em muitos países. As restrições de mobilidade para trabalhadores temporários na época da colheita podem causar o apodrecimento das safras, como vimos recentemente no Reino Unido e na Itália, e isso afeta a economia local e o abastecimento de alimentos. O fato de alguns países necessitarem dos recursos de outros se torna um grave problema quando o comércio é interrompido ou mesmo as fronteiras são fechadas - como é o caso da Covid-19 -, fatores que aumentam as chances de alguns países sofrerem crises alimentares.
A alimentação influencia o nosso futuro. É um ato político, como diz Wendell Berry. Cada alimento nos dá, como cidadãos e consumidores, a oportunidade de construir sistemas alimentares resilientes. Comprar dos agricultores locais encurta a cadeia de abastecimento para um único grau de separação entre produtor e consumidor, o que reforça a resiliência dos centros locais de produção de alimentos.
Escolher alimentos produzidos localmente, obtidos por meio de práticas regenerativas, contribui para a descarbonização do sistema alimentar e melhora os ecossistemas naturais dos quais dependemos. De preferência, comer alimentos vegetais e não processados impulsiona o ciclo saudável e de baixo carbono da relação entre o ser humano e a Terra.
Garantir dietas saudáveis e sustentáveis para todos é possível, mas isso requer o fornecimento de uma combinação de renda mais alta, suporte nutricional e preços mais baixos para uma população de até 3 bilhões de pessoas, de acordo com a FAO. E não esqueçamos que prevenir o desperdício de alimentos é essencial para reduzir nossa pegada alimentar. Entre o campo e a cozinha, perde-se ou se desperdiça mais de um terço dos alimentos.
Os governos estão bem conscientes de que estão em jogo a resiliência alimentar e a saúde pública de suas respectivas nações. O Escritório Regional para a Europa, da Organização Mundial da Saúde, está trabalhando na elaboração de Diretrizes Alimentares para Saúde e Sustentabilidade, a fim de fornecer aos países as melhores sugestões para a formulação de políticas sólidas. Graças aos esforços do ex-diretor-geral da FAO, José Graziano da Silva, os governos estão cada vez mais atentos ao desperdício de alimentos.
Em fevereiro de 2016, a França promulgou a Lei Garot, um regulamento que visa reduzir o desperdício de alimentos pela metade e desviar 5 milhões de toneladas excedentes de alimentos dos aterros, até 2025. A França continua em primeiro lugar no Índice de Sustentabilidade Alimentar. A Itália aprovou uma lei semelhante, em agosto de 2016. E a União Europeia publicou recentemente a Estratégia da roça à mesa para criar um sistema alimentar resiliente, equitativo e saudável, que se converta em padrão global de sustentabilidade.
Na produção de alimentos, o caminho para a resiliência está cuidadosamente traçado graças à Avaliação Internacional do Papel do Conhecimento, Ciência e Tecnologia no Desenvolvimento Agrícola (IAASTD, em sua sigla em inglês). Os 58 países signatários dizem que concordam com mais de 400 cientistas em todo o mundo que “não podemos continuar atuando como fizemos até agora” e que devemos eliminar o petróleo da agricultura, ao mesmo tempo em que desenvolvemos práticas agroecológicas que melhorem a produtividade de forma sustentável, graças a um tecido resistente de pequenas propriedades familiares. Infelizmente, poucos países cumpriram o que foi firmado e atualizaram suas políticas agrárias com a incorporação de diretrizes que favorecem a ecologia na agricultura, apesar da defesa feita por Olivier de Schutter, ex-relator especial da Organização das Nações Unidas sobre o direito aos alimentos.
Na medida em que a Covid-19 invade as comunidades em todo o mundo, uma lição essencial é que o acesso a alimentos saudáveis nunca pode ser dado como certo. O Dia da Sobrecarga da Terra é mais um argumento. Podemos atrasar a data em 32 dias, se melhoramos a resiliência e a sustentabilidade do sistema alimentar. A receita é visível: um sistema alimentar descarbonizado, regenerativo, de proximidade, sem desperdícios e em conformidade com as estações, que permita que os nossos pratos se encham de alimentos saudáveis, cultivados de forma sustentável, predominantemente à base de vegetais e saborosos.
São necessárias políticas sensatas, sem dúvida. Mas uma das ferramentas mais poderosas para realizar essa transformação talvez seja o garfo com o qual comemos.
Reproduzido do IHU-Unisinos. A tradução é do Cepat