Boaventura de Sousa Santos é um dos mais reconhecidos intelectuais de Portugal na atualidade e seu trabalho ecoa também no Brasil. Mas a forma como interveio na avaliação da recente eleição portuguesa é muito desleal, falsificando os fatos - com consequências em especial para os leitores brasileiros que não acompanham a realidade portuguesa.
José Correa, 5 de fevereiro de 2022
A sua matéria sobre o tema foi publicada no jornal Público, de Lisboa, em 31 de janeiro de 2022, com o título "Obviamente, demita-se" (cobrando a demissão de Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda) e, com nomes e conteúdos ligeiramente diferentes (ver texto do Luiz Leiria no box), em dois sites brasileiros, no Outras palavras (Portugal: o erro dramático de uma esquerda) e no A terra é redonda (Portugal – o colapso da geringonça), supomos que com títulos dados pelos editores. A terra é redonda ao menos publicou um artigo de Francisco Louçã com uma outra avaliação da eleição.
Como se sabe, o Partido Socialista de António Costa obteve nas eleições parlamentares de 30 de janeiro de 2022 - antecipadas por sua iniciativa e tendo como pretexto a derrota na votação do Orçamento de Estado (OE) para 2022 - a maioria absoluta no parlamento, muito à frente da direita tradicional do PSD. Os dois partidos à esquerda, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, tiveram uma importante queda na votação. A extrema-direita - Chega e Iniciativa Liveral - cresceu em detrimento da direita. O PS captalizou o voto útil contra a direita. Informações bastante detalhadas de todo o processo, seus antecedentes e resultados podem ser consultadas no verbete em inglês da Wikipedia.
Mas, para Boaventura, "a esquerda à esquerda do PS perdeu a oportunidade histórica que granjeou depois de 2015 ao construir uma solução de governo de esquerda que ficou conhecida por geringonça (PS, BE, PCP), uma solução que travou a austeridade da imposta pela solução neoliberal da crise financeira de 2008 e lançou o país numa recuperação econômica e social modesta mas consistente. Esta solução começou a precarizar-se em 2020 e colapsou em finais de 2021 com a rejeição do orçamento apresentado pelo governo. Foi isso que levou às eleições antecipadas de 30 de Janeiro." A razão dela fracassar foi, na opinião de Boaventura, o "vanguardismo" do Bloco de Esquerda.
Ora, a chamada "geringonça" foi uma tática utilizada pelo Bloco de Esquerda para pressionar para que um governo social-liberal (no caso do Partido Socialista) não girasse ainda mais para a direita e pudesse ecoar algumas reivindicações populares - na medida que existisse correlação de forças para fazer essa pressão. O PCP e o BE, não participavam do governo, mas também não contribuiam em votações que pudessem derrubá-lo e levar a um governo de direita, como aconteceu em 2011. Foi um acordo formal, entre 2015 e 2019, que tinha uma plataforma política e abarcava também o Partido Comunista Português. Esse acordo não foi renovado por falta de interesse do Partido Socialista, que desde então buscava condições de se livrar de compromissos à esquerda.
Como observou com distanciamento Pedro Magalhães, que coordena o centro de sondagens do ISCTE, no panorama que o jornal Público fez, em 5 de fevereiro, de avaliações da eleição, "o grande problema em que o PCP e o BE se colocaram foi que eram tratados pelo PS como se fossem oposição e eram vistos como se fossem parte do governo. Muita gente achava que a 'geringonça' existia depois de 2019. Não existia coisa nenhuma (...) Há quem diga que rejeitaram o OE e depois pagaram [nas urnas]. A outra leitura é que reitaram porque tinham de sair disto", notou, acrescentando "que a erosão do PCP e BE já lá estava antes do chumbo [derrubada] do OE". Magalhães acredita que a decisão "até os protege ao longo prazo", uma vez que agora "têm quatro anos para se posicionarem como partidos que fazem oposição à maioria absoluta". Como recorda a matéria, "nas eleições de 2011, o BE também caiu na sua representação parlamentar, passando de 16 deputados para oito. Em 2015 os bloquistas recuperaraim e conseguiram 19 deputados, um máximo de assentos para o partido" (Público, 5/2/2022, p. 14).
As questões de fundo são a adesão do PS ao projeto político neoliberal (isto é, ao globalismo financeirizado representado pelas instituições e regras da União Europeia), a dependência da economia portuguesa do turismo e, agora, o impacto enorme que a pandemia teve sobre estas atividades. O PS quer ter acesso aos fundos europeus de recuperação - o que implica retomar medidas com impacto negativo sobre os serviços públicos e os setores populares. Michael Roberts mostra detalhadamente como isso é uma ilusão e a adesão à União Europeia não trouxe ganhos para Portugal (como já evidenciou, com ainda mais gravidade, o caso da Grécia), mas principalmente alavanca as economias de países como a Alemanha e a França.
Frente a políticas direitistas do PS, o Bloco e o PCP deveriam sacrificar seus projetos estratégicos e compromissos sociais e ser solidários com aquele partido? Devem pautar sua razão de ser simplesmente pelos humores eleitorais e seus fluxos e refluxos ao ritmo das conjunturas? Obviamente não, inclusive porque, diferente de 2011 e apesar da chantagem do PS, alardeando uma eventual vitória da direita, o que estava em jogo era se aquele partido conseguiria ou não maioria absoluta - e não se dariam lugar a um governo de direita. A maioria absoluta do PS foi saudada como uma vitória dos interesses empresariais. Tratou-se de uma crise política artifical tramada por António Costa com o apoio do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, do PSD (Rui Riu, líder do PSD, inclusive insinuou que apoiaria uma "geringonça de direita"), que assustou os eleitores de esquerda e reforçou a pressão pelo voto útil no PS.
A intervenção de Boaventura de Sousa Santos tem um sentido político muito evidente (que ele já vinha expressando com frequencia nas discussões sobre temas da América Latina): não há razão para uma esquerda existir fora do social-liberalismo, seja a social-democracia europeia, seja o progressismo latino-americano. Deve apoiá-lo e disputá-lo por dentro.
O debate português sobre a eleição de 30 de janeiro pode ser seguido nesta ordem:
- as declarações iniciais de Catarina Martins, coordenadora do Bloco, publicadas no Esquerda.net com o título de “Maiorias absolutas não deixaram boas memórias em Portugal” e da deputada Mariana Mortágua "Para o que der e vier" (aqui);
- uma primeira resposta no Facebook por Luiz Leiria "Obviamente, perdeu a razão", que publicamos ao final desta matéria;
- a resposta política a Boaventura publicada por Fernando Rosas "Desventuras da errância política" (aqui)
- a resposta política a Boaventura publicada por Joana Mortágua "Absolutamente" (aqui)
Uma discussão que interessa em todas as partes
Não nos iludamos pela maneira truculenta como Boaventura de Sousa Santos interviu. Este não é somente um debate português, embora tenha suas particularidades nacionais, conjunturais ou táticas. Do Syriza ao Podemos (mas também frente ao correismo no Equador e ao lulismo no Brasil), há sempre uma questão de orientação estratégica que subordina as definições táticas: é ou não necessário impulsionar abertamente uma nova esquerda, com um projeto qualitativamente diferente e demarcado da esquerda do século XX, uma esquerda que se manifesta desde o surgimento do altermundialismo, no início do século XXI, mas que ainda não conseguiu projetar-se como alternativa global?; em função disso, a esquerda não aderida ao sistema deve buscar disputar seu espaço por dentro do velho bloco histórico ou em simbiose com os partidos social-liberais, com a esquerda tradicional, ou deve projetar-se com identidade e cara própria nas disputas institucionais?
De um lado, na medida em que uma extrema-direita nacionalista cresce como alternativa ao globalismo neoliberal de corte mais cosmopolita, o nacionalismo passa a prevalecer sobre o internacionalismo, a desorientação política cresce, os horizontes emancipatórios são amesquinhados, a pressão sobre as correntes críticas pela esquerda ao social-liberalismo é amplificada e a discussão se torna muito mais dura. Estamos frente a um novo ciclo em que o social-liberalismo assume a máxima de Margareth Thatcher: "There is no alternative" (Não há alternativa) ou TINA. A alternativa à globalização em curso há quatro décadas seria o fascismo.
Mas há uma terceira opção sendo construida depois de 1999 pelo altermundialismo e, nos últimos anos, pela enorme coalizão de movimentos socio-ambientais e suas intersecções com as lutas da classe trabalhadora - feminina e racializada - do capitalismo de plataformas. "Salários, condições de trabalho, serviços de saúde, resposta à emergência climática", como afirmou Catarina Martins; um "Serviço Nacional de Cuidados", como chamou o BE. Cuidar do planeta e da natureza, feridos pela globalização neoliberal, e de todas as pessoas, fora dos critérios de mercado e lucro - esse é o novo por cuja gestação somos responsáveis.
De outro lado, o abandono do horizonte estratégico de mudanças estruturais desconhece que os projetos em disputa são simultaneamente nacionais e internacionais. "Com a globalização do capital, estes planos estão se tornando mais fortemente interconectados", destaca Perry Anderson na conclusão de seu livro The H-Word: The Peripeteia of Hegemony, de 2017. A ausência desse horizonte leva ao esquecimento de aspectos óbvios da disputa política: as eleições definem somente alguns aspectos do poder; as mudanças qualitativas devem vir da autoorganização social; a busca pela unidade na ação se faz mantendo independência, programa, perfil próprio.
Nos tacanhos marcos nacionais, a uniddade é reduzida a processos eleitorais ou governamentais e a frente única se torna um fetiche, esquecendo as lições do século XX: "Uma política de frente única dirigida para os partidos socialista e comunista é um componente tático da orientação estratégica geral. Mas é apenas isso - um componente e não um substitutivo dessa orientação”, afirmava Ernest Mandel em 1979, quando tratava da "Hegemonia reformista e frente única" (os destaques são de Mandel). Para ele, a “redução simplista da estratégia de unificação das forças proletárias e elevação máxima da consciência de classe à política da frente única dos partidos socialista e comunista tem paralelo frequente na ilusão espontaneísta de que a formação real dessas frentes únicas é, por si só, suficiente para levar os trabalhadores a romper com os reformistas em virtude da amplitude das lutas unificadas que resultariam”. Volta-se a questão: para que projeto (agenciamentos, programa, estratégia...)?
O Bloco de Esquerda, como o Anticap na Espanha, pode não ter definido para si todos os elementos de sua orientação estratégica. Mas, ao contrário do Syriza e da maioria do Podemos, não esqueceu dos fundamentos de sua razão de existir: compromisso com um projeto de mudanças estruturais, que exige a preservação de sua independência política frente a correntes social-liberais. É desse horizonte que Boaventura abre mão, com soberbia, em sua crítica ao "vanguardismo" do Bloco de Esquerda.
BOX
OBVIAMENTE, PERDEU A RAZÃO!
Luiz Leiria no Facebook
Se há coisa que me repugna é ver quando um (falso) amigo se aproxima de nós, depois de termos sido vítimas de uma queda aparatosa e, em vez de nos ajudar, como caberia aos amigos, nos cobre de cuspidelas e pontapés, sem perder a prosápia e a arrogância e ainda gritando: “Não Me deste a atenção que Me é devida, não foi? Eu avisei! Burro! Ignorante!”
Boaventura de Sousa Santos (BSS) fez isto mesmo com o Bloco de Esquerda e, pior, personalizando a violência sobre a coordenadora do Bloco, Catarina Martins, uma mulher que reúne qualidade e capacidade política raras no universo dos e das dirigentes partidárias (perguntem aos que já debateram com ela…). Exigiu o sociólogo que ela se demitisse! (pressuponho que da função de coordenadora).
Mas quem é BSS para fazer esta exigência? Não saberá ele que o Bloco de Esquerda é um partido que se rege, como é normal, por um estatuto e um programa? BSS é pelo menos aderente do Bloco? Que eu saiba, não. No Bloco de Esquerda, – e não é preciso ser sociólogo para ter disto conhecimento – as decisões são tomadas pelas instâncias dirigentes previstas nos estatutos e Catarina Martins foi reeleita na última convenção, em maio de 2021, para um mandato de dois anos. Posso garantir que se há dirigente que reúne unanimidade entre os militantes, é ela.
BSS, se tivesse continuado a falar com dirigentes ou militantes do Bloco de Esquerda em vez de invocar apenas aquele que já aqui não está para esclarecer (e tenho a certeza, pelos milhares e milhares de quilómetros que rodámos juntos, eu e o Miguel Porta, e pelos anos de conversas que tivemos, desde 1973, que ele também ficava repugnado com o sujeito que vê alguém no chão e vai lá pontapear e espezinhar), enfim, se BSS se tivesse informado minimamente, teria sido mais prudente. Mas não. No mundo de BSS, os intelectuais eméritos, transformados em caudilhos, estão acima de coisas comezinhas como estatutos partidários – que horror! –, até porque pouca experiência têm de fazer parte de qualquer partido, e sentem-se autorizados de, a seu bel prazer, nomear ou desnomear dirigentes.
Ponhamo-nos de acordo: não entro aqui no mérito das alegações políticas de BSS para demonstrar os erros do Bloco. Pode até ter razão. Pode até estar certo em tudo. Mas perde a razão com a descabida exigência “Obviamente, demita-se!”
Afinal, política não é futebol, e Catarina Martins não é treinadora para receber acenos de lencinhos brancos. É coordenadora de um partido que já demonstrou que sabe recuperar das quedas, por mais aparatosas que elas sejam.
Nota: só há pouco me dei conta de que o artigo de BSS tem duas versões: a que aparece no Público,que tem o título "Obviamente, demita-se" e a versão para o Brasil que essencialmente é a mesma mas não tem a exigência personalizada. Comecei o dia lendo a sua versão para o Brasil, que me chegou por mão amiga, e que tem outro título. Só de noite é que li o artigo do Público e percebi a diferença.