Aproximam-se, na França, as eleições presidenciais e o debate político aumenta de intensidade. Os partidos tradicionais da esquerda correm o risco de desaparecer do mapa político.
José Manuel Rosendo entrevista Pascal Perrineau, "Meu Mundo, Minha Aldeia", 3 de Fevereiro, 2022
Temos um ambiente político (em França) com disputas por vezes violentas… a França é verdadeiramente assim?
Resposta – Como sabe, a França é um país com uma tribo política. Há um apego dos franceses ao debate político, até no seio das famílias. As discussões mais agitadas em França, de uma forma geral, são as discussões políticas. Desde há muitos anos que os franceses estão furiosos com o mundo político. O nível de desconfiança que exprimem nos inquéritos de opinião em relação aos eleitos e aos partidos políticos, é gigantesco. São quase dois terços dos franceses, por vezes 80%, que declaram não ter confiança nos políticos…
P – E porquê?
R – Por muitas razões. A França foi o país que inventou a clivagem esquerda-direita durante a Revolução Francesa e as pessoas agora não percebem bem para que serve essa clivagem. A esquerda aproximou-se da direita, a direita aproximou-se da esquerda, temos um Presidente que diz que não é de direita nem de esquerda, que é de direita e de esquerda… daí que os franceses possam ter perdido “a sua referência” (“leur repaire”, no original). E isso irrita-os. Por outro lado, consideram que a classe política é ineficaz quanto às grandes questões, o aquecimento do clima, o fluxo migratório… toda uma série de grandes questões que, é certo, ultrapassam a esfera nacional, mas os cidadãos consideram que a classe política é ineficaz e são muito severos.
O mundo político é visto como um teatro político extremamente afastado das preocupações dos franceses. Um teatro com bons e maus hábitos e, de facto, entre os maus hábitos, assistimos nas últimas semanas a um conjunto de posições utilizando querelas que são antes de mais querelas verbais. Não percebemos muito o que debatem os políticos. O Presidente da República diz que “emmerde” os não vacinados, utilizando um vocabulário vulgar que não é habitual ouvir na boca de um Presidente… no Parlamento assistimos a uma guerra de emendas com a oposição a propor centenas de alterações para bloquear o trabalho parlamentar. Daí que tenhamos a sensação de que o mundo político se agita dentro da sua própria bolha sem verdadeiramente tratar do que inquieta os franceses.
P – A extrema-direita cresce, Éric Zemmour e Marine Le Pen têm cerca de 30% (nas sondagens), a direita aproxima-se da extrema-direita (o professor dirá se é mesmo assim…), a esquerda dividida tem dificuldades… o que é que se passa?
R – De facto há um verdadeiro sismo político que já conhecíamos desde a última eleição presidencial. Em 2017, quando Emmanuel Macron foi eleito, o candidato socialista e o candidato de direita foram ambos eliminados na primeira volta. Tivemos então um duelo entre Marine Le Pen, candidata da extrema-direita, e Emmanuel Macron representante, supostamente, do campo progressista. A esquerda e a direita foram eliminadas e isso pode voltar a acontecer nas próximas presidenciais.
Hoje em dia, as questões da globalização, da Europa, são questões que, por vezes, enfraquecem (o modelo d)a velha clivagem esquerda-direita. Estas questões são cada vez mais entre os que são favoráveis à mundialização, sejam de esquerda ou de direita, e os que lhe são hostis. A clivagem essencial na sociedade francesa quando se trata de Macron e Le Pen é o quê? É a clivagem entre aqueles que são a favor da globalização – Macron – contra quem representa o campo dos franceses extremamente inquietos com a globalização para os quais apenas há inconvenientes na abertura económica, política, social e cultural. Assim, o mal-estar político francês está ligado ao facto de que o país que inventou a clivagem esquerda-direita, e que viveu com ela durante dois séculos, está a caminho de descobrir uma outra clivagem. O mundo político está entre estas duas clivagens: a velha clivagem esquerda-direita em que se discute se Valérie Pécresse (candidata presidencial dos Les Républicains) vai conseguir passar à segunda volta das eleições; e depois a nova clivagem entre o mundo aberto e o mundo mais centrado na Nação que está bem representado no duelo entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen. O que explica em grande parte que um em cada três franceses se prepare para votar num(a) candidato(a) da extrema-direita é que esta extrema-direita francesa é muito nacionalista e coloca-se na vanguarda do campo de recentragem sobre a Nação. É isso que lhe dá força num país em que a ideia de Nação, a Nação francesa, que se articula na fórmula política que é a República laica. Tudo isto é algo profundamente enraizado em França.
De uma certa maneira, a inteligência dos candidatos da extrema-direita foi a de fazer uma verdadeira OPA (Oferta Pública de Aquisição para compra de acções e consequente controlo de uma empresa) sobre a República, sobre a laicidade e sobre a Nação. Em relação a estas grandes questões a esquerda está muito mal…
P –É a minha próxima pergunta: Edgar Morin pergunta para onde foi o povo de esquerda….
R – Ah sim… desde logo está muito fraco…
P – Mas existe! Ou não?
R – Ele existe, ele ainda existe, claro…
P – Onde está ele?
R – Está muito fraco. Quando pergunta aos franceses se eles são de direita ou de esquerda, há cerca de um francês em quatro que diz ser de esquerda. A sociedade francesa está mais à direita. Virou à direita em questões de autoridade, emigração, luta contra a delinquência, e a luta contra o terrorismo favoreceu muito essa tendência. O terrorismo que a França conheceu bem – a França foi muito atingida pelo terrorismo – suscitou uma reacção de inquietação e uma busca de segurança. E isso serviu muito mais a direita do que a esquerda que, com os seus temas tradicionais, ficou muito menos confortável. Então… onde estão os eleitores de esquerda? Muitos estão na abstenção que neste momento bate recordes em França, neste velho país em que a participação era elevada mas agora estamos habituados a ver metade dos franceses a absterem-se; há eleitores de esquerda, mais populares, que passaram para a direita e alguns para a extrema-direita… sim, no eleitorado de Marine Le Pen há eleitores de esquerda, do protesto social – isto quer dizer que Marine Le Pen é utilizada como meio de protesto social dos trabalhadores contra um mundo aberto em que eles apenas vêem inconvenientes: a deslocação das indústrias para o estrangeiro, a concorrência no mercado de trabalho com trabalhadores imigrantes, etc.. daí que haja eleitores de esquerda que foram para muito, muito longe, do terreno tradicional da esquerda…
P – E têm a consciência de que passaram para a direita?
R – É complicado. Esses eleitores, por vezes, têm ainda a sensação de que são de esquerda. E dizem o quê? Há alguns anos escrevi um livro(i) onde falo do “esquerdismo lepenista” (le gaucho-lepèniste(ii), no original), as pessoas de esquerda que passaram para o campo de Marine Le Pen. Eu entrevistei-os. Muitas vezes dizem: “não fomos nós que mudámos, continuamos a ser de esquerda, defendemos que os trabalhadores possam ter meios para viver melhor, não fomos nós que mudámos, foi a esquerda que mudou”. Eles dizem: “ora vejam, a esquerda já não quer saber de nós. A esquerda considera que é melhor ocupar-se das minorias, dos jovens, dos imigrantes, mais do que dos trabalhadores”. É certo que há eleitores de extrema-direita entre os eleitores de Marine Le Pen, mas só esses não explicam os resultados… se assim fosse ela não teria obtido os resultados que conseguiu. Em 2017, na segunda volta das presidenciais ele obteve 33%.
P – É muito…
R – É muito!
P – Islamo-gauchismo, migrações, religião… a extrema-direita diz quais devem ser os temas de debate… põe estes temas em cima da mesa. Economia, aquecimento global, educação, são temas marginais no debate. Como é que isto pode mudar e como é que se pode ter um debate sobre a verdadeira política?
R – É difícil! Porque esta (presidenciais) é uma eleição estranha. É 11ª eleição presidencial na Vª República e é a primeira que se faz em situação de pandemia. Os franceses, hoje, não estão a pensar nas eleições presidenciais. Pensam em primeiro lugar na sua saúde, na saúde dos mais próximos, na pandemia que não para de se expandir – mais de 300.mil pessoas estão a ser contagiadas diariamente(iii)… um número enorme… nos Estados Unidos um milhão de pessoas… daí que toda a gente tenha este problema no pensamento bem como os desafios de saúde pública, da situação do sistema hospitalar, porque são questões decisivas e impedem a existência de outras questões. Contudo, à extrema-direita, há o desafio da identidade. É extremamente importante o desafio da identidade nacional. Porquê? Porque a história de França é a de um país com uma identidade nacional forte, já era assim na monarquia e em seguida nas diferentes Repúblicas que a França conheceu. Hoje muitos franceses interrogam-se sobre esta identidade nacional, que é uma questão simples, mas muito difícil de responder: o que hoje é ser francês numa Europa e num Mundo abertos? O que é ser francês? É uma identidade religiosa, uma identidade cultural, uma identidade puramente política, é uma identidade linguística…? As pessoas confrontam-se com questões de identidade. E aí, o discurso simples, por vezes simplista, da extrema-direita é uma resposta a estas questões. A extrema-direita diz que uma França eterna, que significa a França de amanhã, corresponde à França de ontem. E tudo ficará bem. E como não há muitas outras respostas, seja de Emmanuel Macron, que hesita, seja da direita, que por vezes fala depois da extrema-direita, seja da esquerda, porque não tem resposta, porque está completamente desconcertada, quase que não existe eleitoralmente… e é assim que a extrema-direita progride. O fenómeno Zemmour é isso! Zemmour fala de uma maneira quase obsessiva da identidade nacional e diria que quase não tem oposição. Daí que o seu discurso forte sobre identidade tenha conseguido partir do zero e, em alguma semanas, chegar aos 13 ou 14% nas sondagens, o que é surpreendente para um homem que politicamente não representava ninguém ainda há poucos meses.
Mas isto não quer dizer que os franceses não pensem na economia e nas questões sociais. É preciso prudência, porque os franceses sabem que a economia começou a recuperar, o desemprego baixou, e isso pode conduzir a um aumento dos salários. A questão do aumento de salários, para os salários médios e para os mais reduzidos, é um assunto que interessa verdadeiramente os franceses.
P – Mas é um tema que não está na campanha…
R – Não está na campanha por agora. Mas as coisas podem mudar porque a vida política em França, como em muitos outros países europeus, ficou muito volátil. Os eleitores já não têm a fidelidade que tinham anteriormente. A ideologia passava de pais para filhos: comunistas, socialistas, conservadores… hoje já não é isso que acontece. Os eleitores ficaram muito voláteis: podem mudar de campo, de partido, abster-se ou participar… as coisas podem mudar muito em três meses. Há cinco anos, a previsão a três meses das eleições não era de todo a vitória de Emmanuel Macron. E foi ele, um jovem que nunca tinha feito política, que foi eleito Presidente da República.
P – “Emmerder” os anti-vacinas (a frase de Emmanuel Macron). Macron entrou na campanha?
R – Sim, ele entrou na campanha…
P – Há aqui algum calculismo…?
R – Sim, certamente. Ele entrou na campanha mas não da melhor maneira porque um Presidente da República não fala dessa forma. Mesmo que um Presidente esteja face a pessoas que provocam problemas – os anti-vacinas, pessoas que não estão vacinadas, provocam problemas, são eles que entopem os hospitais, são eles que impedem que outras pessoas recebam cuidados de saúde…
P – É o argumento do porta do governo para justificar o que o Presidente disse (emmerder les anti-vax)…
R – Claro, isso é verdade. Mas nunca se insulta os adversários. É um princípio que um Presidente da República, velho ou novo, deve saber: não se insultam os franceses quando se é o Presidente de todos os franceses! E ele foi demasiado longe. Ele não disse apenas que quer “emmerder” os franceses anti-vacinas, ele disse que são pessoas que não merecem a condição de cidadãos. Ele foi demasiado longe. No fundo é um Presidente da República que cede a um certo populismo, uma certa política grosseira, um pouco vulgar. Isso deve-se ao facto de o Presidente estar um pouco tenso e nervoso. E está assim porque preferia falar de outras coisas que não da Covid19, mas ela está aí e impõe que se fale dela, impedindo que se fale de outros temas, em particular do crescimento económico, o tema das reformas – porque no fundo o Presidente não fez grandes reformas e a grande reforma que era esperada, a da segurança social, não foi feita…
P – Mas o Presidente disse o que disse por estar nervoso e tenso, como diz, ou houve calculismo e reagiu assim sabendo precisamente o que estava a fazer?
R – A táctica consiste em transformar todas as pessoas que sejam consideradas indecisas quanto às vacinas, em anti-vacinas primários, ultraconservadores, idiotas imbecis… e de colar os Republicanos (Les Republicains) aos extremos, a extrema-direita e a extrema-esquerda que são, digamos, não anti-vacinas mas cépticos em relação às vacinas. É para colar os Republicanos – que constituem uma ameaça para o Presidente da República – aos extremos. No fundo, uma forma de dizer: os republicanos não são gente séria.
O nervosismo do Presidente explica-se com o facto de ele saber muito bem que vencerá um(a) candidato(a) extremista que passe à segunda volta (das presidenciais). Seja Éric Zemmour ou Marine Le Pen, ele (Macron) vencerá. Se Valérie Pécresse, candidata dos Republicanos, passar à segunda volta, a vitória de Macron não é garantida.
P – Mas apesar de tudo isso, as sondagens mostraram que metade dos franceses não ficou chocada com as declarações (“emmerder les antivax”) do Presidente…
R – Ficaram chocados com as palavras. Uma maioria de franceses, entre 53 e 60%, segundo as sondagens, ficaram chocados. Não se espera que um Presidente fale desta forma e penso que eles têm razão. Mas quanto ao fundo da questão, nós somos, uma grande maioria, juntamente com Portugal e Espanha, dos países mais vacinados da Europa, e os franceses consideram que a única estratégia útil é a de ser vacinado e fazer com que os 5 milhões de franceses ainda não vacinados possam ser vacinados. Mas, será que se leva as pessoas a serem vacinadas através do insulto? Claro que não.
P – Olhando para as presidenciais, se fosse jogador de Casino em qual candidato colocaria as fichas?
R – A probabilidade mais forte é a reeleição de Macron. Por várias razões. As sondagens dão-lhe a vitória – mas as sondagens podem mudar – e a variável económica é boa. O crescimento económico está de regresso a França e o desemprego baixou significativamente. Há desemprego jovem, que coloca muitos problemas, mas os indicadores económicos são bons e as possibilidades de reeleição são elevadas. Mas eu diria que há sempre uma variável psicológica. Os franceses, tal como os portugueses, os espanhóis, os alemães… a política funciona também com os afectos, com os sentimentos. É certo que o Presidente é apoiado por um quarto dos franceses que votarão nele na primeira volta, mas ele não é o objecto de um amor apaixonado dos franceses, porque há em França um anti-macronismo…
P – À esquerda e à direita…
R – À esquerda e à direita e que se deve mais a alguns comportamentos do Presidente do que às suas políticas. O Presidente parece ter sido desdenhoso nos últimos anos, exprimindo distância em relação aos franceses, o que por vezes foi visto como um relativo desprezo. Como alguém que não compreende muito bem as angústias das pessoas mais desfavorecidas, por exemplo as pessoas que se exprimiram no movimento social dos “coletes amarelos” e que fizeram tremer a sociedade francesa durante vários meses. Ficou a impressão de que o Presidente não compreendeu, que está muito longe desse mundo. Daí que, à volta desta temática de um Presidente distante, afastado, exista um anti-macronismo em França. Isto torna necessário que o Presidente seja sensível e faça um esforço para se fazer amar pelos franceses. Veremos se nos próximos meses de campanha ele vai conseguir mostrar que não é um Presidente órfão, distante dos franceses.
P – Quem vai passar à segunda volta?
R – Neste momento há uma corrida muito apertada entre duas mulheres: Marine Le Pen e Valérie Pécresse…
P – E Éric Zemmour, não?
R – Éric Zemmour por agora está a 3 ou 4 % de diferença das duas candidatas. E Valérie Pécresse pode, eventualmente, ultrapassar Marine Le Pen e se isso acontecer e Pécresse passar à segunda volta, tudo muda! Teremos uma candidata de um grande partido, o grande partido conservador francês Les Republicains, para além disso é uma mulher candidata contra um homem que será menos jovem do que em 2017 e que não poderá voltar a ser o candidato da novidade, porque será um candidato com um passado – os cinco anos de mandato – e parte desse passado pode ser um passivo (promessas não cumpridas ou decisões mal aceites).
P – Numa segunda volta assim, será a esquerda a apoiar Macron?
R – Claro! Mas saber se o eleitorado de centro-direita (que apoiou Macron em 2017) continua fiel a Emmanuel Macron ou vai apoiar Valérie Pécresse é a questão de que depende esta eleição presidencial.
P – A Esquerda tem alguma possibilidade?
R – Em política é sempre difícil dizer “toujours ou jamais” (sempre ou nunca), mas a probabilidades mais elevada é que a esquerda seja eliminada na primeira volta, desde logo porque está muito dividida com cinco ou seis candidatos e os apelos de unidade não têm nenhum acolhimento. Nem Jean-Luc Mélenchon, candidato mais à esquerda, nem o candidato ecologista Yannick Jadot aceitam uma abordagem unitária, e Christiane Taubira(iv) que se apresenta como eventual candidata que poderá juntar a esquerda tem 5% nas sondagens. Penso que qualquer candidato não conseguirá ultrapassar os 10% e não chegará à segunda volta. Assim, a possibilidade mais elevada é que a esquerda não esteja presente na segunda volta e que se desmorone até que considere, nos próximos anos, uma verdadeira recomposição, com novos dirigentes, uma nova organização e uma nova estratégia.
O que provoca o fracasso da esquerda é que muitos franceses sentem que a esquerda, que teve muito a dizer à sociedade industrial que era a França do século XX, essa esquerda não tem agora nada a dizer a uma sociedade que é a sociedade de um mundo aberto, sociedade de serviços, de quadros em que se transformou a sociedade francesa. É esse o problema fundamental da esquerda.
P – Os antigos partidos já não têm qualquer hipótese?
R – Não, não têm, os velhos partidos estão numa crise extramente profunda. Veja o Partido Socialista, que nasceu em 1905, que foi o grande partido da esquerda francesa…
P – Elegeu dois presidentes…
R – Que teve dois presidentes na Vª República, François Mitterrand e depois François Hollande… hoje, a candidata do PS e presidente da Câmara de Paris, Anne Hidalgo, recolhe 4% nas sondagens. Isto quer dizer que está em vias de desaparecer… o Partido Socialista pode, eventualmente, desaparecer. Há alguns anos era impensável.
P – Como o Partido Comunista…
R – Sim, como o Partido Comunista, que é agora uma força completamente marginal. O candidato Fabien Roussel(v) recolhe entre 2 e 3%. Mas há, de facto, um risco de marginalização dos grandes partidos que fizeram a história da esquerda francesa durante um século e meio. Há uma real possibilidade que o Partido Socialista e o Partido Comunista desapareçam pouco a pouco do cenário político.
P – Consegue imaginar a França com um Presidente como Marine Le Pen ou Éric Zemmour?
R – Não creio que essa possibilidade seja concebível. Em política nada é impossível e, por exemplo, no Brasil, Bolsonaro foi eleito Presidente. Donald Trump foi eleito nos Estados Unidos, mas aí foi diferente porque teve o apoio do Partido Republicano. (Nesta lógica) porque não uma presidência de Marine Le Pen? Mas, o anti-Lepinismo, como o anti-Zemmourismo que é ainda mais forte, é uma realidade. Quer isto dizer que Marine Le Pen consegue um bom resultado na primeira volta porque ela concentra, tal como Éric Zemmour, uma série de protestos. Muitas pessoas vão votar nestes candidatos porque estão furiosas, querem gritar. Mas, quanto à segunda volta, as pessoas sabem que aí vão dar a chave do poder a alguém. O mau-humor cede passagem à reflexão. E essa reflexão faz com que, em França, não entreguemos a chave do poder supremo a um candidato extremista.
P – Mas a minha questão é se pode ser um problema para a França…
R – Sim, pode ser um problema, porque um candidato ou uma candidata de extrema-direita que obtivesse 45% na segunda volta colocaria um problema. Mostraria que a sociedade francesa não está bem, que as inquietações, as tensões, as fracturas na sociedade francesa são extremamente importantes. E esse cenário é possível.
Hoje, quando olhamos para uma segunda volta, eventualmente entre Emmanuel Macron e Marine Le Pen, Macron recolhe 56% e Le Pen 44%. Há cinco anos ela obtinha 33%. Há uma verdadeira dinâmica por detrás destes candidatos que são os candidatos do nacionalismo e do populismo. A sociedade francesa foi tocada como outras, Áustria, Itália, Grã-Bretanha, pelas pulsões nacionalistas e populistas.
P – Pode também ser um problema para a União Europeia, como já acontece com Viktor Orbán…?
R – Sim, porque mesmo que não vença as eleições, mas se mostrar que a França está tocada pelas forças do nacionalismo e do populismo, isso enfraquecerá o papel de liderança na União Europeia que a França pretende recuperar, juntamente com a Alemanha. Assistimos, num momento de presidência francesa do Conselho da União Europeia, à reaproximação entre o novo Chanceler alemão e o Presidente francês. A França quer, de novo, ter a sua palavra a dizer e fazer parte de uma força que relance a dinâmica da União Europeia. Será mais difícil, mesmo com Emmanuel Macron Presidente, se ele tiver uma curta vitória contra a extrema-direita na segunda volta das presidenciais.
(i) Cette France de Gauche qui vote FN, 2017, Edições du Seuil.
(ii) Já anteriormente a expressão fora utilizada por actores políticos como foi o caso de Xavier Bertrand ao Le Journal du Dimanche, 18 de maio de 2013.
(iii) Entrevista efectuada a 6 de janeiro de 2022.
(iv) Christiane Taubira venceu entretanto as primárias de esquerda, realizadas de 27 e 30 de janeiro.
(v) Fabien Roussel é candidato às presidenciais e secretário nacional do PC francês.
Pascal Perrineau é cientista político e antigo director do Centro de Pesquisa Política de Sciences Po (CEVIPOF). Entrevista publicada no blogue "Meu Mundo, Minha Aldeia", de José Manuel Rosendo.