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Engels, o socialista que queria uma vida boa para todos

Este mês marca o bicentenário do alemão da Renânia, parceiro de Marx, transformado em velho Londrino

· Formação,Sem Fronteiras,Vale a pena ler

Tristam Hunt, A terra é redonda, 13 de novembro de 2020

Enquanto a maioria dos artistas radicais passaram os últimos anos demandando que se derrubassem as estátuas de heróis imperiais, em Manchester, eles seguiram o caminho contrário. Em 2017, o cineasta Phill Collins transportou, em uma camionete, uma estátua de Friederich Engels do leste da Ucrânia, uma ex-colônia do império Soviético, para o coração do norte da Inglaterra.

Foi um gesto magnífico e contra intuitivo: colocar o homem que odiava a ‘Cottonopolis’ no coração de seu nexo comercial. Com a exceção de uma cortês plaqueta azul na colina Primorose, ao norte de Londres, e uma placa que outrora se encontrava na praia de Eastbourne (onde suas cinzas foram despejadas), a estátua é um dos desesperançosamente poucos lembretes que temos de um dos maiores emigrados da Grã-Bretanha.

Este mês marca o bicentenário do renano, transformado em relutante Mancuniano, transformado em velho Londrino.

Sempre contente com tocar o “segundo violino para um primeiro violino tão esplêndido” como Karl Marx (“Como pode alguém invejar a genialidade; é algo tão especial que nós, que não a temos, sabemos que se trata de algo inatingível desde o começo?”), ele merece muito mais do que apenas ser elencado como o homem coadjuvante da história.

Ele não apenas foi instrumental para a estruturação do Marxismo do século XX, mas sua própria visão do socialismo parece ser mais relevante para nossos anseios contemporâneos do que a pura economia política de Marx.

Nascido em 28 de novembro de 1820, em Barmen, no entorno do vale Wupper, na Prússia, Engels cresceu como o herdeiro de uma família estritamente Calvinista, capitalista e sufocantemente burguesa de mercadores têxteis. Sua infância foi de amor, cheia de parentes, de riqueza familiar e coesão comunal, no que foi chamado de “a Manchester Alemã”. Porém, desde a juventude Engels achava os custos humanos da prosperidade de sua família difíceis de suportar. Com apenas 19 anos, escreveu sobre o drama dos trabalhadores industriais “em pequenas salas onde as pessoas respiram mais fumaça de carvão e poeira do que oxigênio”, e lamentou a criação de “pessoas totalmente desmoralizadas, sem moradia fixa ou emprego estável”.

Após cair no encanto dos Jovens Hegelianos na Universidade de Berlin, foi a Manchester de 1840 que o direcionou ao socialismo. Enviado para trabalhar na fábrica da família, em Salford, no epicentro da revolução industrial, ele viu como o capitalismo desregulado implica desumanização constante: “Mulheres incapacitadas de engravidar, crianças deformadas, homens enfraquecidos, membros esmagados, gerações inteiras arrasadas, afligidas por doenças e enfermidades, puramente para satisfazer os interesses da burguesia”, como coloca em sua obra máxima, A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra (1845).

O que Engels brilhantemente também revelou neste livro foi como o planejamento urbano e a regeneração foram áreas de disputa de classe. Ele é o pai da sociologia urbana moderna, explicando, de uma maneira com a qual nos familiarizamos apenas hoje, como o espaço urbano sempre é socialmente e economicamente construído. Os atuais comentadores da privatização do espaço público, ou o trabalho de Mike Davis sobre nosso Planeta das Favelas, existem, todos, na sombra da pioneira crítica engeliana da Manchester industrial.

Após o fracasso das revoluções continentais de 1848, Engels foi forçado a voltar para Manchester no papel de lorde do algodão para financiar a filosofia de Marx. Ele odiava isso. “Barganhar é brutal demais, o mais brutal de tudo é o fato de não apenas ser um burguês… mas ser um que ativamente toma partido contra o proletariado”.

Esse doloroso sacrifício pessoal garantiu a publicação de Das Kapital em 1867 e, com isso, a sintetização da visão de mundo Marxiana. Infelizmente, o trabalho de toda a vida de Marx logo pareceu correr o risco de ser vítima da “conspiração burguesa do silêncio”, até que Engels começasse a organizar a tão necessária publicidade. Foi a popularização de Engels dos insights centrais de Marx, em seus panfletos Anti-Duhring e Socialismo: Utópico e Científico, que lançaram o Marxismo como uma doutrina global convincente.

“A maioria das pessoas é preguiçosa demais para ler calhamaços como O Capital”, Engels explicava, ao mesmo tempo em que os seus próprios guias inteligíveis do Marxismo ganhavam leitores pela França, Alemanha, América, Itália e Rússia.

Depois da morte de Marx em 1883, Engels aproveitou-se da liberdade de expandir o pensamento de Marx em novas direções. Em seu estudo sobre a história da vida familiar, Engels dispôs as fundações de um feminismo socialista com a sua conexão da exploração capitalista com a desigualdade de gênero.

Similarmente, Engels, de forma pioneira, avançou a visão Marxista da liberação colonial com sua análise preliminar do imperialismo como componente central do capitalismo Ocidental. Do Vietnã à Etiópia, da China à Venezuela, a teoria da emancipação de Engels foi adotada por defensores da liberdade anti-imperialistas, mesmo quando o império soviético o mobilizou para expandir-se pelo Leste Europeu.

Engels era uma figura de profunda significância histórica e filosófica. No entanto, o que eu descobri, como seu biógrafo, foi que sua visão do socialismo pode também ser altamente animadora: o aterrador, corrupto, anti-intelectual Marxismo igualitário do século XX tê-lo-ia horripilado. “O conceito de uma sociedade socialista como o reino da igualdade é um conceito Francês unilateral”, ele disse. Em vez disso, Engels acreditava em cascatear os prazeres da vida – comida, sexo, bebida, cultura, viagens, até mesmo a caça de raposas – por todas as classes. Socialismo não devia ser uma reunião infinita do partido trabalhista, mas um aproveitamento da vida. O desafio real de viver em Manchester era que ele não podia encontrar uma “única oportunidade para fazer útil o meu reconhecido talento em misturar uma salada de lagostas”.

É, portanto, inteiramente apropriado que sua estátua agora comande a praça Tony Wilson, nomeada em homenagem ao intenso cofundador da Factory Records e do clube Hacienda, que também acreditava nas boas coisas da vida. Finalmente, 200 anos depois de seu nascimento, e bem distante de sua terra natal, temos uma memória adequada de Engels em seu lugar justo.

Tristram Hunt é professor de história na Queen Mary University of London. Autor, entre outros livros, de Comunista de casaca – a vida revolucionária de Friedrich Engels (Record). Tradução: Daniel Pavan. Publicado originalmente no jornal The Guardian

Nota do tradutor

[1] A “Norhthern Powerhouse” é a visão do governo do Reino Unido para uma economia do norte super conectada e globalmente competitiva com um setor privado florescente, uma população altamente qualificada e uma liderança civil e empresarial mundialmente reconhecida. Ela cobre geograficamente 11 LEPs (Local Enterprise Partnerships). Uma delas é Manchester. Fonte: https://northernpowerhouse.gov.uk/about/.

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